A Régua e o Fluxo: Por que a Propriedade Clássica Não Alcança o Bem Digital

 

Newton Luiz Finato


Resumo

A revolução digital impôs uma ruptura paradigmática ao conceito clássico de propriedade, historicamente fundado na tangibilidade, escassez e exclusividade. Este artigo propõe uma análise crítica da inadequação dos institutos fundamentais do Direito Civil brasileiro — como posse, titularidade, função social e responsabilidade civil — diante da emergência de bens digitais, como dados, algoritmos e criações autônomas por inteligência artificial. A partir de uma abordagem histórico-filosófica, revisita-se a origem do conceito de propriedade no Direito Romano e na filosofia liberal, especialmente em Locke, para então confrontá-lo com a natureza fluida, replicável e não escassa dos ativos digitais. Por fim, demonstra-se como a tentativa de aplicar categorias tradicionais, como a distinção entre bens móveis e imóveis, resulta em insegurança jurídica e obsolescência normativa. Conclui-se pela necessidade de um novo léxico jurídico, capaz de lidar com os desafios da era algorítmica.


Palavras-chaves: Propriedade digital; Direito Civil; Inteligência Artificial; Dados; Responsabilidade jurídica


Introdução

A humanidade vive uma revolução tecnológica de impacto civilizatório, mas insiste em utilizar ferramentas jurídicas concebidas para uma realidade que não existe mais. Tenta-se, com crescente dificuldade, medir o fluxo incessante de dados com uma régua de madeira, gerando uma insegurança que ameaça tanto os direitos individuais quanto a própria inovação. Este artigo propõe uma jornada às fundações do nosso conceito de propriedade para entender por que ele entrou em crise. Em um primeiro ato, revisitaremos a “pedra fundamental” do direito e da filosofia, que nos ensinaram o que significava “possuir algo” no mundo físico. Em seguida, apresentaremos o “novo objeto” – a natureza estranha e não escassa dos bens digitais. Finalmente, analisaremos o confronto direto entre o velho e o novo, demonstrando como os institutos clássicos do Direito Civil falham diante do desafio do algoritmo.


I. A Pedra Fundamental: O que a Filosofia nos Ensinou sobre "Possuir Algo"?

Para compreendermos os desafios atuais, é imperativo revisitar as ideias que construíram nosso presente. A primeira grande matriz de nosso pensamento vem do Direito Romano, que nos legou a noção da propriedade como um poder quase absoluto. Essa soberania, materializada nos direitos de usar, fruir e dispor (jus utendi, fruendi et abutendi), foi sendo ao longo dos séculos relativizada por normas constitucionais e pelo interesse público, que impuseram a prevalência da função social.


Paralelamente, uma justificação filosófica se consolidou. Em sua obra seminal, Segundo Tratado sobre o Governo, John Locke argumentou que a propriedade é um direito natural que precede o Estado. Para Locke, um indivíduo apropria-se de um recurso ao misturar seu trabalho a ele. “Ao trabalhar e criar propriedade, o homem se expande, imprime sua marca no mundo, estende sua personalidade. É um ato de afirmação e liberdade.” Assim, emerge o paradigma clássico: a propriedade era física, escassa, definida pelo trabalho humano e legitimada pelo poder de usar, fruir e dispor.


II. O Novo Objeto: A Natureza da Coisa Digital

Se o paradigma clássico foi erguido sobre a tangibilidade e a escassez, a revolução digital abala seus próprios alicerces. Estamos diante de bens intangíveis e, sobretudo, não escassos. O primeiro desses objetos a desafiar a lógica clássica são os dados. Eles subvertem o princípio da escassez: não se esgotam com o uso e podem ser replicados indefinidamente. A exclusividade, fundamento da propriedade tradicional, perde sua razão de ser.


Num segundo nível, surgem os algoritmos e modelos de Inteligência Artificial. Diferentemente de ferramentas estáticas, elas são entidades dinâmicas que aprendem e evoluem a partir dos dados que processam. Essa plasticidade torna sua natureza jurídica ainda mais escorregadia.


No ápice da crise, estão as obras criadas autonomamente por IA. Um texto ou imagem gerado por um modelo avançado levanta uma questão ontológica: o que é isso? A ausência de um “autor”, no sentido humano, desafia os fundamentos do direito autoral.


III. O Confronto: Quando o Martelo da Lei Encontra o Algoritmo

Quando o Direito Civil tenta regular o imaterial, o colapso de seus institutos é inevitável. A própria distinção entre bens móveis e imóveis se mostra inadequada para ativos que não possuem corpo físico nem localização definida. Essa falha de classificação gera uma profunda insegurança jurídica. A partir daí, as demais funções entram em colapso:


a) A Posse

Como ter posse, no sentido do art. 1.196 do Código Civil, de algo que pode ser "possuído" por milhões ao mesmo tempo? A falta de critérios claros compromete a segurança em disputas sobre uso e acesso.


b) A Função Social da Propriedade

Concebida como limite ao exercício do direito de propriedade, a função social — prevista no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal e no art. 1.228, §1º, do Código Civil — pressupõe um bem com impacto territorial, comunitário ou ambiental. No entanto, ativos digitais como algoritmos, dados e modelos de IA operam em escala global, com efeitos difusos e muitas vezes invisíveis. Como exigir função social de um código que recomenda vídeos ou precifica seguros? A ausência de critérios objetivos para essa aplicação digital pode gerar tanto omissão quanto abuso regulatório.


c) A Titularidade

O direito autoral exige um autor humano. Mas quem é o titular de uma obra criada por IA? A ausência de um regime claro para essa titularidade não-humana gera uma perigosa lacuna de proteção.


d) A Responsabilidade Civil

Se um algoritmo autônomo e opaco causa dano, como se estabelece o nexo causal? A previsão de responsabilidade objetiva do art. 927 do Código Civil não foi pensada para os riscos difusos das plataformas digitais, abrindo a porta para uma possível impunidade tecnológica.


Conclusão

A jornada do arado ao algoritmo nos trouxe a um ponto de inflexão. A aplicação dos institutos clássicos à realidade digital é, como vimos, uma tentativa de usar ferramentas obsoletas para um trabalho inteiramente novo. A falha não é apenas teórica: ela compromete a efetividade do direito e a proteção dos cidadãos. O desafio, portanto, não é meramente adaptar, mas ter a coragem de criar um novo léxico jurídico, com princípios pensados para o século XXI, como acesso, transparência e ética algorítmica. O futuro do Direito não está em resistir à era digital, mas em se permitir ser reconstruído por ela.


Referências

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TEPEDINO, Gustavo (org.). Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.


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