DESMISTIFICAÇÃO DA ONDA DO DNA


Valdemar W. Setzer
Dept. de Ciência da Computação, Instituto de Matemática e Estatística, Universidade de São Paulo
www.ime.usp.br/~vwsetzer
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Este texto reproduz essencialmente um e-mail que enviei em 31/5/00 a meus colegas de departamento, aos 3 biólogos citados no início do texto e a alguns amigos. Como várias pessoas, sabendo que minha concepção de mundo não é a padrão, andaram pedindo minha opinião sobre a onda que se está fazendo em torno do DNA resolvi torná-lo público, colocando-o em meu site. Com isso, poderei ir agregando eventualmente adições e atualizações. Comentários são muito bem vindos. As citações cujos originais estão em inglês são minhas traduções; os originais podem ser encontrados na versão em inglês deste artigo. Última revisão: 23/12/11.





No dia 25/5/00 houve no Instituto de Física da USP uma interessante palestra de Andrew Simpson, do Instituto Ludwig, coordenador do Projeto Genoma da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Ele mostrou como o projeto iniciou-se sem que se tivesse muita ideia de como o levantamento do genoma da mal-falada bactéria Xylella fastidiosa, que ataca os laranjais iria até o fim, e como ele desenvolveu novos métodos para que se conseguisse levar o projeto a um excelente termo. Mas não estou aqui para elogiar seu projeto e a boa condução que ele deu ao mesmo, pois isso tem sido feito a rodo (ver, por exemplo, citações em M. Moura, "O novo produto brasileiro", Pesquisa FAPESP 55, julho de 2000, pp. 8-15), e sim criticar algumas afirmações que ele e outros estão fazendo em torno do DNA, e que me parecem anticientíficas. Infelizmente, isso praticamente não está sendo discutido.

No fim da palestra, eu quis discutir com ele esses pontos, mas fui podado pelo coordenador da sessão, cujo nome não conheço e nem vale a pena conhecer. Assim, aproveitei este meio para enviar minhas opiniões aos meus colegas de departamento, a ele, à Lucille Floeter-Winter do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (ICB), que ouviu palestra minha dada no seu instituto, em que toquei de leve nesses problemas, e também ao Hugo Armelin, do Instituto de Química da USP, que deu em 13/4/00 palestra no IME sobre seus projetos em torno do DNA e de genes, no fim da qual o colega Antônio Galves, do Depto. de Estatística, não deixou eu discutir com o palestrista, o que motivou e-mail meu aos colegas do departamento, comentando a palestra, que Armelin não respondeu.

Curiosamente, pouco antes da palestra do Simpson, eu havia acabado de ler um livro que considero extraordinário, The Triple Helix – Gene, Organism and Environment, de Richard Lewontin, Cambridge: Harvard Univ. Press, 2000. Aliás, quando mostrei o livro durante o curto tempo que pude usar após a palestra, Simpson veio logo tomar nota do seu nome; pode ser que ele já sabia que Lewontin (de 70 anos) é um famoso biólogo e zoólogo evolucionista, professor de Harvard. Foi justamente quando eu quis ler dois trechinhos do livro que o coordenador da palestra cortou-me a palavra e passou para outra colega. (Interessante que vários colegas do IF vieram conversar comigo, querendo saber mais sobre minha posição – isso não aconteceu no IME…) Minha intenção, como logo fui falando enquanto pude, era de mostrar que não havia consenso entre os biólogos sobre certas questões ligadas ao DNA. Vejamos algumas delas.
Simpson projetou logo no 1º slide a frase "Life Defined" e disse "Pela primeira vez podemos definir a vida." Durante a palestra, citou o fato de se ter feito o seqüenciamento genético de uma bactéria do fundo do mar, e que com isso "foi possível reconstituir o funcionamento do organismo, seu metabolismo etc." Minha primeira pergunta a ele foi a citação da frase pronunciada pelo Hugo Armelin na palestra do IME, "o genoma determina o comportamento do organismo", inquirindo se ele (Simpson) estava de acordo com isso. Se me lembro bem, ele titubeou um pouco, mas acabou confirmando ao dizer "creio que a diferença entre eu e o Pelé está em nossos genes."
Lewontin, na p. 10, escreve:"Um dos mais eminentes biólogos moleculares, Sydeny Brenner, dirigindo-se a um grupo de colegas, disse que, se tivesse uma seqüência completa do DNA de um organismo e um computador suficientemente grande, ele poderia computar o organismo." Logo em seguida, escreve: "Um espírito semelhante motiva a alegação feita por uma outra figura proponderante na biologia molecular, Walter Gilbert, de que, quando se tiver a seqüência completa do genoma humano, 'saberemos o que é ser um ser humano'." Lewontin dá as referências a essas duas citações.
Steve Talbott traz no número 102 de Netfuture, de 16/2/00 (ver em www.oreilly.com/~stevet/netfuture; recomendo fortemente essa revista eletrônica a todos interessados em críticas bem feitas e fundamentadas à tecnologia), uma coleção de 8 citações na mesma linha; vou citar apenas uma, devida a James Watson, justamente o tal da descoberta do DNA, diretor do National Center for Human Genome Research: "Quero dizer, naturalmente temos grande respeito pela espécie humana ... Mas a evolução pode ser realmente terrivelmente cruel, e dizer que nós temos um genoma perfeito e que há nele alguma santidade, eu gostaria somente saber de onde veio essa ideia. É uma bobagem total. Além disso, já que ninguém tem a coragem de afirmar, quero dizer, se podemos melhorar os seres humanos sabendo como adicionar genes, por que não deveríamos fazê-lo?"
Acontece que todas essas afirmações – desde as do Simpson à do Watson – não têm base científica. Lewontin mostra que o ambiente é absolutamente essencial para o desenvolvimento de qualquer organismo, isto é, só o DNA não determina o dito cujo. Pior, o ambiente deve ser entendido não como o clima, a geografia etc., mas como o próprio organismo como um todo. As mesmas considerações valem para o ambiente de uma parte interna de um organismo vivo.
Em 21/5/00 eu estava na sala de concertos da Fundação Oscar Americano, ouvindo o concerto da violoncelista Tânia Lisboa. Olhando a grama preta do lado de fora do janelão pensei como ela cria seu próprio ambiente ao seu redor, provocando sombra, não deixando outras plantas aparecerem, secretando seus fluidos na terra etc. De modo que por "ambiente" temos algo imprevisível, resultado da interação do organismo com o seu redor, e não pré-existente. Aliás, o DNA sem o ambiente da célula não produz absolutamente nada. "Jurassic Park" (não vi o filme, baseio-me no que li a respeito) não pode ocorrer, pois não adianta ter um DNA de dinossauro, é preciso ter uma célula "viva" de um ovo de dinossauro para tudo se desenvolver e chegar a um dinossauro. Pior ainda, teríamos que ter condições no ambiente propícias aos dinossauros, criadas em parte por eles próprios; mas se eles não existem, isso não é possível.
Voltando a Lewontin, ele vai muito mais longe. Diz que nem se conhecendo os genes e o meio ambiente pode-se prever o desenvolvimento do organismo, pois ocorre o que foi denominado de "desenvolvimento aleatório" (noisy development), isto é, algo totalmente desconhecido que atua aleatoriamente junto com a interação dos genes com o ambiente, provocando mudanças imprevisíveis no organismo. Ele cita um caso da Drosófila, que tem uns pelos sensórios ásperos (bristles) embaixo das asas. Em média, o número deles à direita e à esquerda é o mesmo, mas em cada indivíduo o número pode variar, dando por exemplo 9 de um lado e 5 de outro. “As células nos dois lados têm os mesmos genes, “.. e parece ridículo dizer que o ambiente de desenvolvimento – a temperatura, umidade, concentração de oxigênio etc., – era diferente no lado direito e no esquerdo de um inseto que tem dois milímetros de comprimento e um de largura, e desenvolveu seus pelos enquanto estava grudado pela sua superfície ventral à parte interior de um recipiente de vidro com a cultura, no laboratório. Portanto, a variação não é a conseqüência nem da variação genética, nem da do meio ambiente. É um desenvolvimento aleatório, uma conseqüência de eventos casuais dentro das células no nível das interações moleculares." (P. 36, ênfase dele.) Mais adiante ele cita que cada um desses pelos em moscas (flies – não sei se está se referindo novamente às drosófilas ou a moscas em geral), originam-se de 3 células, resultantes de 2 divisões de uma célula precursora. Mas essas células têm que migrar durante o desenvolvimento, só que a superfície do inseto vai endurecendo. Se a subdivisão leva muito tempo, as células não chegam a tempo de poder gerar um pelo. "Tais processos aleatórios devem ser subjacentes a um grande número de variações observadas entre os organismos, incluindo variações em seus sistemas nervosos centrais." Aí ele entra em considerações sobre o desenvolvimento dos neurônios do cérebro, e diz: "Mas as conexões devem ser formadas ao acaso, antes de poderem ser estabilizadas pela experiência. Um tal processo de desenvolvimento neural poderia dar origem a diferenças em funções cognitivas que seriam biológica e anatomicamente inatas, no entanto não seriam nem do tipo genético nem ambiental. Estou seguro de que se tivesse estudado violino desde a idade de cinco anos, não seria capaz de tocar um capricho de Paganini como toca Salvatore Accardo, e Accardo sem dúvida tem conexões neurais que me faltam e as tem desde uma tenra idade. Mas não é absolutamente claro que essas diferenças anatômicas são genéticas." (P. 38, minhas ênfases.) Lembrem do caso Simpson vs. Pelé... Logo adiante, atenção: "O organismo não computa a si próprio a partir da informação nos seus genes, e nem mesmo da informação nos genes combinada com a seqüência de ambientes. A metáfora computacional é simplesmente a metáfora de Descartes sobre a máquina, apresentada sob a forma do modismo atual. Como qualquer metáfora, ela capta algum aspecto da verdade, mas tira-nos do caminho correto se nós a tomamos muito seriamente." Aí ele está se referindo ao fato de Descartes ter tido como parte essencial de seu Método o fato de encarar organismos vivos como máquinas.
Nessa questão do ambiente, Lewontin cita pesquisas que mostraram que clones de plantas (muito fáceis de se fazer nas que pegam de galho, é só quebrar o galho e enterrar) não apresentam desenvolvimentos uniformes com o ambiente. Plantando-se clones em várias altitudes, não se observa que as menores (maiores) plantas numa altitude dão as menores (maiores) em todas as altitudes. Existem fatores imprevisíveis na interação com o ambiente (p. 23).
Mas ele não fica só no ambiente. Ele tem um capítulo inteiro intitulado "Partes e o todo, causas e efeitos" (Parts and whole, causes and effects), onde critica a pesquisa das partes de um organismo tentando-se chegar ao organismo todo. "Para serem partes, as coisas devem ser parte de algo. Isto é, não há partes a não ser que exista um todo da qual elas são as peças. Em sistemas biológicos, devido à hierarquia de funções e devido aos múltiplos caminhos causais que se interceptam, a determinação das partes é feita somente depois que o 'todo' apropriado é definido." (P. 79, ênfase dele.) Não há regras universais para subdividir [ cutting up] organismos." (P. 87.) "A visão de mundo reducionista que domina nossa pesquisa da natureza leva normalmente uma pesquisa a ser feita em dois estágios. Inicialmente, há um processo analítico descendente que quebra o todo em suas partes constituintes, que é então seguida por uma fase sintética na qual são descobertos os caminhos causais entre as partes." Aí ele fala do sistema solar, que é expresso em massas, distâncias e velocidades e, na p. 93, volta com o seguinte: "O problema da biologia é que o modelo da Física, tomado como o paradigma para a ciência, não é aplicável porque nos organismos não existem análogos a massa, velocidade, e distância. ... A característica de um objeto vivo é que ele reage aos estímulos externos, em lugar de ser impulsionado por eles. A vida de um organismo consiste em correções constantes durante todo o desenvolvimento [constant mid-course corrections]." Continuando a seqüência anterior: "Em contraste, a pesquisa biológica muitas vezes começa com um processo sintético ascendente, no qual objetos e fenômenos são tomados como partes, mas o todo do qual eles são as partes ainda não é determinado. Como em uma peça de Pirandello, eles são personagens em busca de um autor. O Projeto Genoma Humano, cujo objetivo é seqüenciar o DNA completo de um genoma humano (na realidade, uma composição de um certo número de seres humanos diferentes), é precisamente dessa forma. ... Em seguida, essa seqüência deve ser quebrada em peças de vários tamanhos, que correspondem a unidades funcionais, os genes e os seus elementos reguladores. Há sinais internos à seqüência que fornecem indicações sobre os limites da parte de um gene que é traduzida em proteína, mas eles são apenas indicações e só podem ser confirmados quando uma proteína é encontrada no organismo. Além disso, é virtualmente impossível dizer onde estão os limites das seqüências reguladoras, ... Portanto, é impossível saber como dividir uma seqüência de DNA em genes antes de se saber como a célula lê partes diferentes do DNA durante o processo de produzir uma proteína. Mas esse é apenas o primeiro passo. Mesmo depois de se identificar todos os genes como unidades funcionais na produção de proteínas, não se sabe qual a função dessas proteínas. Portanto, não saberemos como montar a coleção de genes e suas proteínas em subsistemas funcionais com caminhos de conexões causais. Na verdade, se está na posição do paleontólogo que sabe que o Stegosauro tinha placas grandes ao longo de seu dorso mas que deveria perguntar 'Qual a sua utilidade?' Em biologia, essa questão da utilidade não é a mesma que a resultante da análise das partes de um veículo a motor ou de um relógio. Nesse último caso, as funções são conhecidas de antemão, e é certo que todas as partes internas servem uma ou outra dessas funções. ... Somente um engajamento quase religioso na crença de que cada coisa tem uma finalidade poderia levar a fornecer uma explicação funcional das impressões digitais, sobrancelhas ou os tufos de cabelo no tórax dos homens. Na biologia não é possível escapar da relação dialética entre partes e todo. ... A mão é uma unidade adequada de pesquisa se se está ocupado com o ato físico de segurar, mas a mão e o olho em conjunto formam uma unidade irredutível para a compreensão de como se chega a pegar o objeto que se segura." (Pp. 81-82.)
A propósito, foi justamente por isso que Goethe escreveu que o método científico que se usa com seres inanimados não deve ser aplicado a seres animados, e caracterizou o que ele chamou de "tipo" (Typus), uma extensão do mesmo conceito de Aristóteles. Ele chamou a atenção para o fato de em um organismo vivo existir uma unidade, que transcende a manifestação física visível; cada parte tem que ser encarada sempre a partir dessa unidade (que para ele não era física, no entanto investigável pelo pensamento).
Voltando a Lewontin, "O modelo de máquina para a vida levou biólogos a ignorarem uma das características comuns de vários sistemas físicos, isto é, sua dependência de condições iniciais. ... É impossível entender a situação de organismos vivos sem levar em conta a sua história. Populações sujeitas a condições seletivas idênticas podem chegar a pontos finais evolutivos bem diferentes, de modo que a observação que duas espécies diferem não é, de início, uma evidência de que elas eram adaptativamente diferenciadas. Há vários casos nos quais grupos relacionados de espécies têm uma grande variedade de formas da mesma característica básica, mas nos quais não parece haver nenhuma maneira de se fornecer uma história especial de seleção para cada forma." (P. 89.)
Depois da palestra do Hugo Armelin citada acima, escrevi a colegas do meu departamente que, logo depois da 2ª guerra mundial ninguém ousaria dizer que somos determinados pelas características físicas (naquela época, raça, cor, comprimento do nariz etc.). Pois Lewontin confirma essa minha ideia e ainda dá a ela mais precisão e conhecimento: "Até a Segunda Guerra Mundial os biólogos, especialmente geneticistas, eram em sua maior parte deterministas biológicos que atribuíam aos genes a principal influência causal para a formação de diferenças sociais, psicológicas e cognitivas entre indivíduos. Então, quando as conseqüências das teorias biológicas de raça e caráter usadas pelos nazistas tornaram-se largamente conhecidas, houve uma repugnância geral contra o determinismo biológico, e ele foi substituído por uma explicação ambiental de fatos sociais. Mas essa predominância ambiental durou pouco. Dentro de vinte anos após o fim da guerra, explicações genéticas tornaram novamente a dominar, em parte substancial devido ao fato de a psicologia e a sociologia terem falhado em produzir um esquema preditivo para o desenvolvimento psíquico e social humano. A explicação atual é genética." (P. 16, minhas ênfases.)
Ele fala coisas interessantíssimas sobre mutações. Por exemplo, cada uma ocorre em um único DNA. Isso me leva a concluir que será muito difícil obter curas genéticas, pois será impossível trocar todos os DNAs no organismo inteiro, ou mesmo em um órgão inteiro. Daí eu concluo que alterações genéticas totais só serão possíveis ao nível do espermatozóide, do óvulo, do ovo, da mórula e na brástula (logo antes da nidação no útero e o começo da diferenciação); provavelmente os seres humanos "melhorados" serão todos fertilizados in vitro.
Finalmente, Lewontin tem um capítulo "Rumos no estudo da biologia" (Directions in the study of biology), onde ele começa dizendo que nos primeiros capítulos mostrou que "um enfoque reducionista no estudo dos organismos vivos pode levar à formulação de respostas incompletas a questões sobre biologia, não perceber (to miss) as características essenciais de processos biológicos, ou fazer, logo de início, perguntas erradas." (P. 109.) Tenho insistido há muito naquilo que considero uma "pergunta errada": "Como os neurônios geram o pensamento humano?" – e a limitação que isso causa na pesquisa. Ele analisa várias tentativas de resolver formalmente as questões biológicas, como as teorias da catástrofe e do caos, mostrando que não levaram a uma compreensão da natureza, e passa a analisar os problemas da pesquisa. "Uma das conseqüências da heterogeneidade interna é que as funções não podem ser compreendidas sem informação sobre o aspecto [shape] e a forma. ... Mas, na medida em que a química invadiu a biologia no fim do século XIX, com a conseqüência de que os organismos passaram a ser encarados como um conjunto de moléculas, questões sobre a forma foram relegadas em favor do estudo de reações moleculares. A forma voltou novamente a ter um certo papel na explicação reducionista com o desenvolvimento da bioquímica de macromoléculas nos últimos cem anos. ... A culminação do interesse na forma veio com a descoberta da estrutura tridimensional do DNA e as conseqüências da estrutura para explicações da replicação e codificação do DNA. No entanto, ironicamente, a compreensão do papel do DNA na biologia levou a um esquema de explicações que dá uma atenção mínima à estrutura molecular e às relações espaciais entre moléculas. O dogma central da biologia molecular é que a seqüência química de nucleotídeos no DNA determina a seqüência química de aminoácidos em proteínas que, por sua vez, determina a função da proteína. ... É parte do substrato de nossa compreensão da bioquímica que a forma tridimensional dobrada de uma proteína é crítica para a sua função. No entanto, essa compreensão não entra de uma maneira integral na explicação biológica. ... se se deseja compreender qual proteína é produzida de um gene, é necessário investigar a seqüência de produção em seu detalhe espacial e temporal. O dobramento de proteínas também depende do ambiente da célula. ... No entanto, essas compreensões não penetraram na estrutura principal da explicação biológica." (Pp. 114-117.) Veja-se o que ele diz do aparecimento de formas nos embriões: "É adequado dizer que certos genes acabam por serem transcritos em certas células sob a influência da transcrição de certos outros genes, mas a real questão da geração da forma é como a célula 'sabe' onde ela está no embrião. ... o organismo normal é a conexão [nexus] de um grande número de forças que interagem, que são individualmente fracas." (P. 118). Ele dá muita importância a esse fato de as forças que agem nos organismos vivos serem "fracas".
O prof. de genética evolutiva da Univ. de Leeds, John R.G.Turner, comentando o livro de Lewontin, diz: "O próximo estágio requer que os biólogos se concentrem menos nas seqüências moleculares (que parecem ser a resposta, mas não são) e voltem às disciplinas mais tradicionais, como o estudo da forma tridimensional aplicada a moléculas, embriões e organismos." Folha de S.Paulo, 23/4/2000, caderno Mais, p. 27 – aliás, o artigo que me levou ao livro do Lewontin.
Baseado nisso tudo, posso afirmar o seguinte:
1. Não se pode dizer de modo algum que o DNA determina a forma do organismo, quando mais seu comportamento. Sabe-se que alterando o DNA, o organismo muda a forma, mas não se pode afirmar que esta é devida exclusivamente ao DNA. Para mim isso era claro de um ponto de vista filosófico: forma é um modelo, uma ideia, e portanto não é física. O que se manifesta fisicamente é uma aproximação do modelo, que é seguido nessa manifestação. Para mim essa manifestação é resultante do modelo, dos genes e do ambiente, em uma contínua interação..
2. Acho que se conhecem as ligações bioquímicas entre moléculas e componentes das células, mas não se sabe quando essas ligações vão se efetivar ou romper. Na Scientific American de junho de 2000 há um interessante artigo sobre comunicação celular. Foi descoberto algum mecanismo de transmissão de sinais para dentro da célula e que leva esta a criar proteínas. Mas, novamente, é o conhecimento de um mecanismo muito aproximado; não se sabe quando ele se passa, por que se passa em uns casos e não se passa em outros, quais são os elementos celulares que serão envolvidos etc.
3. Em sua palestra, Hugo Armelin citou os processos celulares de diferenciação (isto é, a célula permanece como está), mitose (precedida pela subdivisão do DNA) – que dá origem à multiplicação das células –, e a morte celular (apoptose). Não se consegue examinar uma célula e prever qual dos 3 processos vai se passar com ela. Isto é, não se pode saber como a célula "decide" contribuir para a forma (nem mesmo de uma folha!). Se a forma de um organismo não é compreendida, o que dizer do seu comportamento?
4. Os seres vivos não são máquinas, muito menos computáveis, como muito o que se diz sobre o DNA leva a crer. Não sei o que é pior, achar que o DNA produz deterministicamente qualquer coisa do organismo, ou que o cérebro é um computador digital. Que máquina digital é essa que não tem sincronismo dos sinais? Além disso, não conhecemos nenhuma máquina automática que seja autodeterminada, como qualquer um pode vivenciar interiormente (escolhendo o próximo pensamento); todas seguem um programa (digital ou analógico) rígido. Apenas 1,5% de nossos genes são diferentes dos genes dos chimpanzés. Ora, pois, alguém pode dizer que somos apenas 1,5% diferentes deles em nossa forma e funções? Mesmo se esses 1,5% de genes diferentes se propagassem criando um número muito grande de formas diferentes, será que dariam tantas diferenças entre essas espécies como as que efetivamente existem?
5. Acho que a rigor não se pode falar em "seleção natural" pois como Lewontin mostra, o organismo influencia a natureza ao redor dele. De qualquer modo, a mutação casual como origem de mudanças nas espécies, seguida de seleção natural, é uma especulação pouco convincente para a evolução. Por exemplo, ela exige uma enorme quantidade de mutações concordantes simultâneas (se a girafa fosse produto apenas das mutações que influenciam a forma do pescoço, ela não se manteria em pé!).
6. Está havendo uma tremenda distorção na pesquisa biológica. O enfoque no DNA está empanando – ou eliminando – outros enfoques.
7. Creio que o darwinismo tinha uma razão profunda: querer induzir, talvez forçar a ideia de que os seres humanos são animais. (Eu acho que não são.) Isto é, que não há distinção essencial entre eles e nós. Isso foi bom de um lado, pois forçou um abandono de velhas tradições religiosas, que não cabem mais na nossa constituição de hoje (ver meu artigo "Ciência, religião e espiritualidade", em meu site), que nos leva a procurar explicações e não a aceitar dogmas ou fé. Curiosamente, a ciência tradicional tem um dogma absolutamente claro: não existem processos que não sejam físicos ou químicos. Quantos cientistas dirão, ao ler ou ouvir que esses outros processos talvez existam: "Mas que bobagem!" – quanto preconceito anticientífico! Pois bem, agora a situação é muito pior: as afirmações, principalmente dos cientistas (vejam-se as citações no começo deste ensaio), de que o DNA determina o organismo, tentam induzir, talvez forçar a ideia de que os seres vivos são máquinas (no sentido de serem sistemas puramente físicos), e nós também. Acontece que pode haver ética em relação aos animais, pois eles podem sofrer, em muitos casos de maneira similar à nossa. Não pode haver ética para com as máquinas, como ter dó de desligar um computador; com essa nova mentalidade, obviamente tender-se-á a não ter dó de "desligar" um ser humano-máquina ou fazê-lo sofrer. Ou vamos usar máquinas para educar seres humanos-máquinas etc. ad nauseam. Parece-me que o darwinismo sempre foi altamente especulativo; dá-me sempre a impressão de uma grande elucubração mental (furada, pois faltam os elos perdidos...). Uma força do darwinismo é sua extrema aparente simplicidade (mutações mais seleção natural), que qualquer um pode compreender. No entanto, não há nada, absolutamente nada simples na natureza; mesmo uma pedra teve milhões de anos de história de formação extremamente complexa. Uma outra força dos argumentos baseados no DNA reside no fato de que existe muito mais ciência, muito mais Matemática por detrás deles (as seqüências dos nucleotídeos formam uma linguagem formal). Pior, muito mais tecnologia – as máquinas de deduzir o seqüenciamento. Wolfgang Fischer, biólogo do Insitituo de Ciências Biomédicas da USP, disse-me que essas máquinas tornaram-se como "voltímetros": todos os laboratórios de pesquisa em biologia têm que ter uma (e todos os laboratórios do ICB os têm).
8. Parece-me que justamente no que Lewontin citou como "noisy development" e como é que a célula "sabe" onde está no embrião, bem como em relação ao que Armelin contou dos 3 aspectos da vida celular, isto é, a "decisão" de uma dada célula permanecer como está e ser usada na diferenciação, ou entrar no processos de mitose ou apoptose, que algo não físico pode atuar no crescimento e regeneração de tecidos nos seres vivos. Em um processo de decisão, isto é, escolha no âmbito das ideias, não é necessário gasto de energia física. Eu não posso deixar de admitir como hipótese de trabalho que o ser humano pode ter livre arbítrio, pois vivencio esse fato em mim próprio quando decido escolher conscientemente meu próximo pensamento, observando mentalmente que não há nada que me influencie nessa escolha. Não importa que um biólogo me diga que deve existir algum processo físico ainda desconhecido em meu cérebro provocando a "minha" escolha, pois a sensação que tenho quando controlo meu pensamento é que ajo em liberdade, não havendo absolutamente nada que me force a escolher, por exemplo concentrar meu pensamento em uma representação do número 2 ou do número 5 (se eu escolher inicialmente esses dois, e em seguida decidir imaginar a forma só de um deles; para experimentar esse exercício, devem-se escolher dois números que não evoquem nenhuma lembrança ou preferência). Liberdade não pode vir nem de nossos genes e nem do ambiente; sua origem deve necessariamente ser não física. As leis físicas são inexoráveis, não permitem liberdade. Talvez elas permitam alguma aleatoriedade, mas não é isso que se observa no processo de escolha e concentração em um pensamento. Se agíssemos aleatoriamente, certamente iríamos nos destruir.
9. Talvez muitos biólogos não saibam que estão influenciando a maneira como a humanidade se encara; se soubessem, teriam mais cuidado com o que dizem e escrevem. Armelin citou, com aparente concordância, senão entusiasmo, uma frase em um artigo da revista Science (ou Nature, tanto faz): "A função do cérebro é perpetuar o genoma." Ora pois! Quem sabe (e eu não concordo...) o cérebro de um rato tem essa função, afinal os animais vivem praticamente para sobreviver individualmente e perpetuar a espécie. Qual o tamanho dele, o de uma ou poucas ervilhas? Mas então por que precisamos de um cérebro do tamanho do nosso?
10. Talvez muitos biólogos não saibam que essa influência pode ser (eu acho que será) extremamente prejudicial para a humanidade. O que os nazistas fizeram será fichinha perto do que está vindo, talvez do que está já acontecendo socialmente em muitos lugares. Nos USA, a taxa de tentativa de suicídios entre jovens adolescentes é 2 vezes maior do que a soma das taxas dos 21 países mais industrializados! Lá, há 1,6 milhão de pessoas encarceradas. O consumo de drogas alucinógenas já atingiu proporções fantásticas, destruindo milhões de vidas. Fanatismos e fundamentalismos estão aumentando continuamente.
11. Não sou contra pesquisas. Sou contra a mistificação dos resultados das pesquisas, como está acontecendo com o DNA, principalmente se influencia a mentalidade dos leigos. Também sou contra a orientação forçada da pesquisa para uma área restrita (quem vai recusar laboratórios equipados, verba para técnicos e material, trabalho numa área "quente" em publicações etc., como ocorreu entre nós justamente na área de seqüenciamento genético?) – isso me faz lembrar de minha luta desde 1975 contra os cursos de tecnólogos em processamento de dados, que também foram dados de presente naquela época pelo Ministério da Educação. Mas aí as boas universidades logo perceberam que não era o que elas deviam ensinar, e deixaram de enganar bons alunos com cursos fracos, em geral fazendo um upgrade para cursos de Bacharelado em Ciência da Computação.
Felizmente não estou sozinho, como o livro de Lewontin e o artigo de Turner mostram, obviamente com uma inspiração materialista diferente da minha. As forças que estão por trás das máquinas e da mentalidade de o ser humano ser máquina são infinitamente inteligentes, mas não têm bom senso e sempre acabam por exagerar. Não é preciso ter a minha concepção de mundo para perceber que está havendo um tremendo exagero em torno do DNA; basta conhecer um pouco a área e ter bom senso. Felizmente a humanidade não perdeu ainda totalmente sua intuição para o que é bom e correto, e está começando a recusar os vegetais transgênicos (quanto tempo ainda vai levar para eles produzirem desastres?). (Para uma visão holística dos alimentos transgênicos, recomendo fortemente o artigo se S.Talbott e C.Holdrege "Golden Genes and World Hunger", em Netfuture 108, de 6/6/00 – veja o endereço na Internet no início deste ensaio.) Mas isso não vai durar muito. Não poderemos continuar nos baseando em intuições ou tradições, que estão quase acabadas. É preciso compreender profundamente a natureza humana para se chegar à conclusão de que somos muito mais do que nossos genes nos moldam e do que o ambiente nos fez desenvolver. Porém, essa compreensão depende de uma profunda ampliação dos paradigmas de pensamento e pesquisa científicos.



Obs. Os 3 biólogos citados não se dignaram a comentar meu e-mail.
Depois de ter escrito o texto acima, li o artigo de Lewontin "Genes, Ambiente e Organismo", no interessante livro editado por R.B.Silvers,Histórias Esquecidas da Ciência, São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1997. Esse livro contém também ótimos artigos de S.J.Gould, Oliver Sacks e outros. O artigo de Lewontin é bem mais sucinto que o livro citado acima.
Um livro que li a respeito dos problemas aqui citados foi o excepcional de Craig Holdrege, Genetics & the Manipulation of Life: The Forgotten Factor of Context, Hudson: Lindisfarne Press, 1996. Algum dia vou ter que ampliar o artigo acima citando esse livro..

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