Saiba quando as manias viram doenças
Confundidos com puro perfeccionismo ou mesmo
camuflados num estilo de vida saudável, transtornos ameaçam a saúde
Kamila
Almeida | kamila.almeida@zerohora.com.br
Se a
prática de exercícios físicos ocupa boa parte do seu dia, você passa o tempo
todo arquitetando formas saudáveis de alimentação, vive no médico atrás de
explicações para qualquer incômodo, não sai de casa sem verificar dezenas de
vezes se a luz está apagada ou não consegue trabalhar se a sua mesa não estiver
com papéis e canetas alinhados, é hora de tomar cuidado.
Todas as características descritas acima são de pessoas que sofrem das doenças do excesso. Elas não são novidades, nem raras. Mas os estudos avançados na área da psiquiatria passaram a nominá-las recentemente. Quem faz de tudo por uma alimentação saudável pode ter desenvolvido ortorexia. Aqueles que malham em demasia e se enxergam sempre fracos, vigorexia. Perfeccionismo e organização além da conta podem ter desenvolvido o Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).
Sobre essa última síndrome das demasias, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva acaba de lançar o livro entes e Manias (leia na página ao lado). Sobre as causas do TOC, sabe-se apenas que há um desequilíbrio neuroquímico em algumas áreas do cérebro, principalmente envolvendo o neurotransmissor serotonina, e o componente genético é muito forte, conforme explica a autora.
— Os traços de personalidade de risco são ansiedade, perfeccionismo, desejo de ter tudo sob controle e um senso exagerado de responsabilidade e de dever — destaca.
Com exceção do TOC, que se desenvolve com pouca interferência do meio externo, o restante das doenças do excesso são inundadas de características da conduta social. A competitividade e o querer tudo para ontem encabeçam a lista dos motivos para esses comportamentos extremos, segundo especialistas.
O psiquiatra Renato Piltcher destaca que os excessos também ocorrem em atitudes boas como limpeza, organização, conforto e saúde. Ele destaca que as pessoas têm dificuldade em lidar com o fato de que limite é bom:
— Está relacionado com a noção de existir, com a ideia de perda. Cada um de nós deseja ser tão especial que nenhuma doença vai nos pegar. Esse é o chamado pensamento mágico, presente em quase todas essas doenças do excesso.
A especialista em saúde coletiva, Madel Therezinha Luz, afirma que as pessoas passam dos limites por uma exigência de performance exagerada, lesiva ao organismo.
— As pessoas são chamadas à produtividade o tempo todo e tentam se enquadrar em padrões inatingíveis. É o impulso de comparação para a competição, que está por trás de tudo isso. Todo mundo tem alguma síndrome: uns mais e outros menos — afirma Madel.
Aqueles que perdem a linha e entram para o grupo dos que cometem excessos têm um sintoma em comum: exposição a um componente que causa compulsão pela repetição. A psiquiatra e terapeuta cognitiva Carla Bicca destaca que essa sensação é gerada em um pedaço do cérebro ligado ao prazer e à recompensa, semelhante à zona em que as drogas atuam.
— Faxinar a casa e sentir o cheiro da limpeza é gratificante. Quanto mais a pessoa se expõe, mais o cérebro reconhece esse ato como se fosse o único agradável. Chega uma hora que nada mais satisfaz e vira doença — aponta Carla.
Para não tornar a busca pelo meio termo uma utopia, o coordenador do Ambulatório de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (USP), Márcio Antonini Bernik, dá a dica:
— Não vasculhe excessivamente sintomas e não mude de médico toda a hora, pois o novo doutor pode querer mostrar serviço pedindo ainda mais exames desnecessários. Quem procura, acha.
Para o tratamento desses transtornos, a melhor alternativa é a terapia cognitivo comportamental aliada ao uso de medicamentos inibidores da serotonina, molécula que ajuda na comunicação entre os neurônios.
"Todos podemos ter traços obsessivos"
A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva acaba de lançar o livro Mentes e Manias: TOC: transtorno obsessivo-compulsivo, (Editora Fontanar, R$ 34,90). Dedicada aos estudos do comportamento humano, a autora já publicou obras como Mentes Perigosas: O psicopata mora ao lado e Bullying: Mentes perigosas nas escolas.
Confira algumas explicações da escritora sobre o TOC:
:: O TOC tem a ver com superstições?
Superstições são crenças compartilhadas por pessoas inseridas em determinadas culturas e não têm nada de patológico. Quem tem TOC, entretanto, tende a ter comportamentos que lembram as superstições, só que em um nível mais grave e prejudicial. Se alguém passar por debaixo de uma escada, por exemplo, poderá ficar preocupada, mas esquecerá. Se um portador de TOC acredita que passar por debaixo de escada dá azar, ficará remoendo pensamentos obsessivos, tentando impedir que o“azar”aconteça.
:: Muitas pessoas têm manias. Todos nós podemos ser um pouco obsessivos?
Todos podemos ter traços obsessivos e isso não é ruim, pois nos deixa mais organizados, responsáveis e alertas. Porém, se os pensamentos e comportamentos repetitivos provocam sofrimento ou fazem com que horas do dia sejam gastas cumprindo rituais, é hora de procurar ajuda de um especialista.
Fique por dentro
As doenças do excesso parecem ter a mesma causa. Há psiquiatras que delimitam estes transtornos no eixo dos transtornos obsessivos-compulsivos ou como transtornos aditivos ou impulsivos. Em comum, há a repetição em excesso de algum ato na busca da diminuição da ansiedade ou angústia.
Ortorexia
A fixação pela fiscalização da alimentação, semelhante ao que ocorre nos transtornos alimentares, gera uma alteração na área cerebral responsável pela recompensa. Com isso, vem a necessidade de controle, tornando a preocupação com a comida o objetivo maior. A vigilância é tão grande que a pessoa abre mão de compromissos
sociais e festas para não sair da dieta.
Hipocondria e Transtorno Disfórimico Corporal
São caracterizados por ideias obsessivas e supervalorizadas, com prejuízo da capacidade crítica. Ambos acreditam padecer de um problema físico. Na hipocondria, o indivíduo acredita estar com uma doença grave, consultas vários profissionais, sem acreditar em médicos ou exames que não corroboram sua crença. No transtorno dismórfico corporal, os pacientes procuram médicos na tentativa de melhorar algum “defeito”.
Vigorexia
Também integra um subtipo do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), chamado de Transtorno Dismórfico Corporal. Por mais musculosa que esteja, a pessoa se enxerga fraca. Usa produtos para conquistar a forma física almejada, como anabolizantes. É comum haver isolamento de amigos e familiares.
Fonte: Carla Bicca, psiquiatra
"Não posso evitar a morte"
Um vendedor autônomo, que pediu anonimato, chegou aos 49 anos suando frio para esconder as manias. Nem sempre conseguia. Sufocava de vergonha ao pensar que percebessem que ele verificava 15 vezes o fechamento da porta ou alinhava os travesseiros.
As primeiras lembranças das manias datam dos 10 anos, quando, por nojo, o menino jamais pegava um lápis emprestado na escola. Os exageros evoluíram e até chances de trabalho foram desperdiçadas.
— Tinha medo de ficar longe dos meus pais, pois pensava que algo de mal poderia acontecer a eles. Só tive certeza de que não era o “Todo-Poderoso” com o falecimento da minha mãe, ano passado. Vi que não posso evitar a morte. Há coisas inevitáveis.
Cinco meses depois, buscou ajuda no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Lá, descobriu que a obsessão dele tinha nome: TOC , doença que atinge uma em cada 60 pessoas no mundo. Fez o tratamento e hoje, um ano depois, diminuiu os episódios da doença. Segundo Aristides Volpato Cordioli, professor da Faculdade de Medicina
da UFRGS, os pacientes demoram até 10 anos para visitar um médico, perpetuando e agravando as manias.
Todas as características descritas acima são de pessoas que sofrem das doenças do excesso. Elas não são novidades, nem raras. Mas os estudos avançados na área da psiquiatria passaram a nominá-las recentemente. Quem faz de tudo por uma alimentação saudável pode ter desenvolvido ortorexia. Aqueles que malham em demasia e se enxergam sempre fracos, vigorexia. Perfeccionismo e organização além da conta podem ter desenvolvido o Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).
Sobre essa última síndrome das demasias, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva acaba de lançar o livro entes e Manias (leia na página ao lado). Sobre as causas do TOC, sabe-se apenas que há um desequilíbrio neuroquímico em algumas áreas do cérebro, principalmente envolvendo o neurotransmissor serotonina, e o componente genético é muito forte, conforme explica a autora.
— Os traços de personalidade de risco são ansiedade, perfeccionismo, desejo de ter tudo sob controle e um senso exagerado de responsabilidade e de dever — destaca.
Com exceção do TOC, que se desenvolve com pouca interferência do meio externo, o restante das doenças do excesso são inundadas de características da conduta social. A competitividade e o querer tudo para ontem encabeçam a lista dos motivos para esses comportamentos extremos, segundo especialistas.
O psiquiatra Renato Piltcher destaca que os excessos também ocorrem em atitudes boas como limpeza, organização, conforto e saúde. Ele destaca que as pessoas têm dificuldade em lidar com o fato de que limite é bom:
— Está relacionado com a noção de existir, com a ideia de perda. Cada um de nós deseja ser tão especial que nenhuma doença vai nos pegar. Esse é o chamado pensamento mágico, presente em quase todas essas doenças do excesso.
A especialista em saúde coletiva, Madel Therezinha Luz, afirma que as pessoas passam dos limites por uma exigência de performance exagerada, lesiva ao organismo.
— As pessoas são chamadas à produtividade o tempo todo e tentam se enquadrar em padrões inatingíveis. É o impulso de comparação para a competição, que está por trás de tudo isso. Todo mundo tem alguma síndrome: uns mais e outros menos — afirma Madel.
Aqueles que perdem a linha e entram para o grupo dos que cometem excessos têm um sintoma em comum: exposição a um componente que causa compulsão pela repetição. A psiquiatra e terapeuta cognitiva Carla Bicca destaca que essa sensação é gerada em um pedaço do cérebro ligado ao prazer e à recompensa, semelhante à zona em que as drogas atuam.
— Faxinar a casa e sentir o cheiro da limpeza é gratificante. Quanto mais a pessoa se expõe, mais o cérebro reconhece esse ato como se fosse o único agradável. Chega uma hora que nada mais satisfaz e vira doença — aponta Carla.
Para não tornar a busca pelo meio termo uma utopia, o coordenador do Ambulatório de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (USP), Márcio Antonini Bernik, dá a dica:
— Não vasculhe excessivamente sintomas e não mude de médico toda a hora, pois o novo doutor pode querer mostrar serviço pedindo ainda mais exames desnecessários. Quem procura, acha.
Para o tratamento desses transtornos, a melhor alternativa é a terapia cognitivo comportamental aliada ao uso de medicamentos inibidores da serotonina, molécula que ajuda na comunicação entre os neurônios.
"Todos podemos ter traços obsessivos"
A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva acaba de lançar o livro Mentes e Manias: TOC: transtorno obsessivo-compulsivo, (Editora Fontanar, R$ 34,90). Dedicada aos estudos do comportamento humano, a autora já publicou obras como Mentes Perigosas: O psicopata mora ao lado e Bullying: Mentes perigosas nas escolas.
Confira algumas explicações da escritora sobre o TOC:
:: O TOC tem a ver com superstições?
Superstições são crenças compartilhadas por pessoas inseridas em determinadas culturas e não têm nada de patológico. Quem tem TOC, entretanto, tende a ter comportamentos que lembram as superstições, só que em um nível mais grave e prejudicial. Se alguém passar por debaixo de uma escada, por exemplo, poderá ficar preocupada, mas esquecerá. Se um portador de TOC acredita que passar por debaixo de escada dá azar, ficará remoendo pensamentos obsessivos, tentando impedir que o“azar”aconteça.
:: Muitas pessoas têm manias. Todos nós podemos ser um pouco obsessivos?
Todos podemos ter traços obsessivos e isso não é ruim, pois nos deixa mais organizados, responsáveis e alertas. Porém, se os pensamentos e comportamentos repetitivos provocam sofrimento ou fazem com que horas do dia sejam gastas cumprindo rituais, é hora de procurar ajuda de um especialista.
Fique por dentro
As doenças do excesso parecem ter a mesma causa. Há psiquiatras que delimitam estes transtornos no eixo dos transtornos obsessivos-compulsivos ou como transtornos aditivos ou impulsivos. Em comum, há a repetição em excesso de algum ato na busca da diminuição da ansiedade ou angústia.
Ortorexia
A fixação pela fiscalização da alimentação, semelhante ao que ocorre nos transtornos alimentares, gera uma alteração na área cerebral responsável pela recompensa. Com isso, vem a necessidade de controle, tornando a preocupação com a comida o objetivo maior. A vigilância é tão grande que a pessoa abre mão de compromissos
sociais e festas para não sair da dieta.
Hipocondria e Transtorno Disfórimico Corporal
São caracterizados por ideias obsessivas e supervalorizadas, com prejuízo da capacidade crítica. Ambos acreditam padecer de um problema físico. Na hipocondria, o indivíduo acredita estar com uma doença grave, consultas vários profissionais, sem acreditar em médicos ou exames que não corroboram sua crença. No transtorno dismórfico corporal, os pacientes procuram médicos na tentativa de melhorar algum “defeito”.
Vigorexia
Também integra um subtipo do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), chamado de Transtorno Dismórfico Corporal. Por mais musculosa que esteja, a pessoa se enxerga fraca. Usa produtos para conquistar a forma física almejada, como anabolizantes. É comum haver isolamento de amigos e familiares.
Fonte: Carla Bicca, psiquiatra
"Não posso evitar a morte"
Um vendedor autônomo, que pediu anonimato, chegou aos 49 anos suando frio para esconder as manias. Nem sempre conseguia. Sufocava de vergonha ao pensar que percebessem que ele verificava 15 vezes o fechamento da porta ou alinhava os travesseiros.
As primeiras lembranças das manias datam dos 10 anos, quando, por nojo, o menino jamais pegava um lápis emprestado na escola. Os exageros evoluíram e até chances de trabalho foram desperdiçadas.
— Tinha medo de ficar longe dos meus pais, pois pensava que algo de mal poderia acontecer a eles. Só tive certeza de que não era o “Todo-Poderoso” com o falecimento da minha mãe, ano passado. Vi que não posso evitar a morte. Há coisas inevitáveis.
Cinco meses depois, buscou ajuda no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Lá, descobriu que a obsessão dele tinha nome: TOC , doença que atinge uma em cada 60 pessoas no mundo. Fez o tratamento e hoje, um ano depois, diminuiu os episódios da doença. Segundo Aristides Volpato Cordioli, professor da Faculdade de Medicina
da UFRGS, os pacientes demoram até 10 anos para visitar um médico, perpetuando e agravando as manias.
CADERNO
VIDA ZH
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