POR
DENTRO DO CÉREBRO - Entrevista com Paulo Niemeyer Filho, neurocirurgião
POR DENTRO DO CÉREBRO
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O neurocirurgião
Paulo Niemeyer Filho conta os avanços nos tratamentos de doenças como o
mal de Parkinson e como evitar aneurisma e perda de memória.
E projeta, ainda, o futuro
próximo, quando boa parte do sistema neurológico estará sob controle do
homem.
Chegar à casa do neurocirurgião
Paulo Niemeyer Filho, no alto da Gávea, no Rio de Janeiro, é uma
emoção. A começar pela vista deslumbrante da cidade, passando pelos
macacos que passeiam pelos galhos até avistar as orquídeas que caem em
pencas das árvores, colorindo todo o jardim.
Ou seja: a competência desse
médico, com 33 anos de profissão, que dedica sua vida à medicina com a
paixão de um garoto, pode ser contada em flores. E são muitas.
Filho do lendário neurocirurgião
Paulo Niemeyer, pioneiro da microneurocirurgia no Brasil, e sobrinho do
arquiteto Oscar Niemeyer, Paulo escolheu a medicina ainda adolescente.
Aos 17 anos, entrou na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quinze dias depois de formado,
com 23 anos, mudou-se para a Inglaterra, onde foi estudar neurologia na
Universidade de Londres.
De volta ao Brasil, fez doutorado
na Escola Paulista de Medicina. Ao todo, sua formação levou 20 anos de
empenho absoluto.
Mas a recompensa foi
à altura. Apaixonado por seu ofício, Paulo chefia hoje os serviços de
neurocirurgia da Santa Casa do Rio de Janeiro e da Clínica São Vicente,
onde atende e opera de segunda a sábado, quando não há uma emergência
no domingo, e ainda encontra tempo para dar aulas no curso de pós-graduação
em neurocirurgia na PUC-Rio.
Por suas mãos já
passaram o músico Herbert Vianna - de quem cuidou em 2001, depois do
acidente de ultraleve em Mangaratiba, litoral do Rio -, o ator e
diretor Paulo José, a atriz Malu Mader e, mais recentemente, o diretor
de televisão Estevão Ciavatta - marido da atriz Regina Casé que, depois
de um tombo do cavalo, recupera-se plenamente -, além de centenas de
outros pacientes, muitos deles representados pelas belas flores que
enchem de vida o seu jardim.
Revista PODER: Seu pai também era neurocirurgião. Ele o
influenciou?
PAULO NIEMEYER: Certamente. Acho que queria ser igual a ele,
que era o meu ídolo.
PODER: Seu pai trabalhou até os 90 anos. A idade
não é um complicador para um neurocirurgião? Ela não tira a destreza
das mãos, numa área em que isso é crucial?
PN: A neurocirurgia é muito mais estratégia do
que habilidade manual. Cada caso tem um planejamento específico e isso
já é a metade do resultado. Você tem de ser um estrategista..
PODER: O que é essa inovação tecnológica que as
pessoas estão chamando de marcapasso do cérebro?
PN: Tem uma área nova na neurocirurgia
chamada neuromodulação, o que popularmente se chama de marcapasso, mas
que nós chamamos de estimulação cerebral profunda. O estimulador fica
embaixo da pele e são colocados eletrodos no cérebro, para estimular ou
inibir o funcionamento de alguma área. Isso começou a ser utilizado
para os pacientes de Parkinson. Quando a pessoa tem um tremor que não
controla, você bota um eletrodo no ponto que o está provocando, inibe
essa área e o tremor pára. Esse procedimento está sendo ampliado para
outras doenças. Daqui a um ou dois anos, distúrbios alimentares como
obesidade mórbida e anorexia nervosa vão ser tratados com um
estimulador cerebral.Porque não são doenças do estômago, e sim da
cabeça.
PODER: O que se conhece do cérebro humano?
PN: Hoje você tem os exames de ressonância
magnética, em que consegue ver a ativação das áreas cerebrais, e cada
vez mais o cérebro vem sendo desvendado.
Ainda há muito o que
descobrir, mas com essas técnicas de estimulação você vai entendendo
cada vez mais o funcionamento dessas áreas. O que ainda é um mistério é
o psiquismo, que é muito mais complexo. Por que um clone jamais será
igual ao original?
Geneticamente será a
mesma coisa, mas o comportamento depende muito da influência do meio e
de outras causas que a gente nunca vai desvendar totalmente.
PODER: Existe uma discussão entre psicanalistas e
psiquiatras, na qual os primeiros apostam na melhora por meio da
investigação da subjetividade, e os últimos acreditam que boa parte dos
problemas psíquicos se resolve com remédios.. Qual é sua opinião?
PN: Há casos de depressão que são
causados por tumores cerebrais: você opera e o doente fica bem. Há
casos de depressão que são causados por deficiência química: você repõe
a química que está faltando e a pessoa fica bem. Numa época em que se
fazia psicocirurgia existiam doentes que ficavam trancados num quarto
escuro e quando faziam a cirurgia se livravam da depressão e nunca mais
tomavam remédio. E há os casos que são puramente psíquicos,emocionais,
que não têm nenhuma indicação de tomar remédio.
PODER: Já existe alguma evolução na neurologia por
causa das células-tronco?
PN: Muito pouco. O que acontece com as
células-tronco é que você não sabe ainda como controlar. Por exemplo: o
paciente tem um déficit motor, uma paralisia, então você injeta lá uma
célula-tronco, mas não consegue ter certeza de que ela vai se
transformar numa célula que faz o movimento. Ela pode se transformar em
outra coisa, você não tem o controle, ainda.
PODER: Existe alguma coisa que se possa fazer para
o cérebro funcionar melhor?
PN:
Você tem de tratar do espírito. Precisa estar feliz, de bem com a vida,
fazer exercício. Se está deprimido, com a autoestima baixa, a primeira
coisa que acontece é a memória ir embora; 90% das queixas de falta de
memória são por depressão, desencanto, desestímulo. Para o cérebro
funcionar melhor, você tem de ter motivação. Acordar de manhã e ter
desejo de fazer alguma coisa, ter prazer no que está fazendo e ter a
autoestima no ponto.
PODER: Cabeça tem a ver com alma?
PN: Eu acho que a alma está na cabeça.
Quando um doente está com morte cerebral, você tem a impressão de que
ele já está sem alma... Isso não dá para explicar, o coração está
batendo, mas ele não está mais vivo.
PODER: O que se pode fazer para se prevenir de
doenças neurológicas?
PN: Todo adulto deve incluir no check-up uma
investigação cerebral. Vou dar um exemplo: os aneurismas cerebrais têm
uma mortalidade de 50% quando rompem, não importa o tratamento. Dos 50%
que não morrem, 30% vão ter uma sequela grave: ficar sem falar ou ter
uma paralisia. Só 20% ficam bem. Agora, se você encontra o aneurisma
num checkup, antes dele sangrar, tem o risco do tratamento, que é de
2%, 3%. É uma doença muito grave, que pode ser prevenida com um
check-up.
PODER: Você acha que a vida moderna atrapalha?
PN: Não, eu acho a vida moderna uma
maravilha. A vida na Idade Média era um horror. As pessoas morriam de
doenças que hoje são banais de ser tratadas. O sofrimento era muito
maior. As pessoas morriam em casa com dor. Hoje existem remédios
fortíssimos, ninguém mais tem dor.
PODER: Existe algum inimigo do bom
funcionamento do cérebro?
PN: O exagero. Na bebida, nas drogas, na comida.
O cérebro tem de ser bem tratado como o corpo. Uma coisa depende da
outra. É muito difícil um cérebro muito bem num corpo muito maltratado,
e vice-versa.
PODER: Qual a evolução que você imagina para a
neurocirurgia?
PN: Até agora a gente trata das deformidades que
a doença causa, mas acho que vamos entrar numa fase de reparação do
funcionamento cerebral, cirurgia genética, que serão cirurgias com
introdução de cateter, colocação de partículas de nanotecnologia, em
que você vai entrar na célula, com partículas que carregam dentro delas
um remédio que vai matar aquela célula doente. Daqui a 50 anos ninguém
mais vai precisar abrir a cabeça.
PODER: Você acha que nós somos a última geração que
vai envelhecer?
PN: Acho que vamos morrer igual, mas vamos
envelhecer menos. As pessoas irão bem até morrer. É isso que a gente
espera. Ninguém quer a decadência da velhice. Se você puder ir bem de
saúde, de aspecto, até o dia da morte, será uma maravilha, não é?
PODER: Você não vê contraindicações na manipulação
dos processos naturais da vida?
PN: O que é perigoso nesse progresso todo é
que, assim como vai criar novas soluções, ele também trará novos
problemas. Com a genética, por exemplo, você vai fazer um exame de
sangue e o resultado vai dizer que você tem 70% de chance de ter um
câncer de mama. Mas 70% não querem dizer que você vai ter, até porque
aquilo é uma tendência. Desenvolver depende do meio em que você vive,
se fuma, de muitos outros fatores que interferem. Isso vai criar um
certo pânico. E, além do mais, pode criar problemas, como a companhia
de seguros exigir um exame genético para saber as suas tendências. Nós
vamos ter problemas daqui para frente que serão éticos, morais,
comportamentais, relacionados a esse conhecimento que vem por aí, e eu
acho que vai ser um período muito rico de debates.
PODER: Você acredita que na hora em que as pessoas
puderem decidir geneticamente a sua hereditariedade e todo mundo tiver
filhos fortes e lindos, os valores da sociedade vão se inverter e, em
vez do belo, as qualidades serão se a pessoa é inteligente, se é culta,
o que pensa?
PN: Mas aí você vai poder escolher isso também.
Esse vai ser o problema: todo mundo vai ser inteligente. Isso vai tirar
um pouco do romantismo e da graça da vida. Pelo menos diante do que a
gente está acostumado. Acho que a vida vai ficar um pouco dura demais,
sob certos aspectos. Mas, por outro lado, vai trazer curas e conforto.
PODER: Hoje a gente lida com o tempo de uma forma
completamente diferente. Você acha que isso muda o funcionamento
cerebral das pessoas?
PN: O cérebro vai se adaptando aos
estímulos que recebe, e às necessidades. Você vê pais reclamando que os
filhos não saem da internet, mas eles têm de fazer isso porque o
cérebro hoje vai funcionar nessa rapidez. Ele tem de entrar nesse
clique, porque senão vai ficar para trás. Isso faz parte do mundo em
que a gente vive e o cérebro vai correndo atrás, se adaptando.
PODER: Já aconteceu de você recomendar um procedimento
e a pessoa não querer fazer?
PN: A gente recomenda, mas nunca pode forçar.
Uma coisa é a ciência, e outra é a medicina. A pessoa, para se sentir
viva, tem de ter um mínimo de qualidade. Estar vivo não é só estar
respirando. A vida é um conjunto. Há doentes que preferem abreviar a
vida em função de ter uma qualidade melhor. De que adianta ficar ali,
só para dizer que está vivo, se o sujeito perde todas as suas
referências, suas riquezas emocionais, psíquicas. É muito difícil, a
gente tem de respeitar muito.
PODER: Como é o seu dia a dia?
PN: Eu opero de segunda a sábado de manhã, e de
tarde atendo no consultório. Na Santa Casa, que é o meu xodó, nós temos
50 leitos, só para pessoas pobres. Eu opero lá duas vezes por semana.
E, nos outros dias, na Clínica São Vicente. O que a gente mais opera
são os aneurismas cerebrais e os tumores. Então, é adrenalina todo dia.
Sem ela a gente desanima e o cérebro funciona mal. (risos)
PODER: Você é workaholic?
PN: Não é que eu trabalhe muito, a minha vida é
aquilo. Quando viajo, fico entediado. Depois de alguns dias, quero
voltar. Você perde a sua referência, está acostumado com aquela
pressão, aquele elástico esticado.
PODER: Como você lida com a impotência quando não
consegue salvar um paciente?
PN: É evidente que depois de alguns anos, a
gente aprende a se defender. Mas perder um doente faz mal a um
cirurgião. Se acontece, eu paro com o grupo para discutir o que se
passou, o que poderia ter sido melhor, onde foi a dificuldade. Não é
uma coisa pela qual a gente passe batido. Se o cirurgião acha banal
perder um paciente é porque alguma coisa não está bem com ele mesmo.
PODER: Como você lida com as famílias dos seus
pacientes?
PN: Essa relação é muito importante. As famílias
vão dar tranquilidade e confiança para fazer o que deve ser feito. Não
basta o doente confiar no médico. O médico também tem de confiar no
doente. E na família. Se é uma família que cria caso, que é brigada
entre si, dividida, o cirurgião já não tem a mesma segurança de fazer o
que deve ser feito. Muitas vezes o doente não tem como opinar, está
anestesiado e no meio de uma cirurgia você encontra uma situação
inesperada e tem de decidir por ele. Se tem certeza de que ele está
fechado com você, a decisão é fácil. Mas se o doente é uma pessoa em
quem você não confia, você fica inseguro de tomar certas decisões. É
uma relação bilateral, como num casamento. Um doente que você opera é
uma relação para o resto da vida.
Poder: Você acredita em Deus?
PN: Geralmente depois de dez horas de
cirurgia, aquele estresse, aquela adrenalina toda, quando você acaba de
operar, vai até a família e diz: "Ele está salvo". Aí, a
família olha pra você e diz: "Graças a Deus!". Então, a gente
acredita que não fomos apenas nós.
PODER: Como você relaxa?
PN: Estudando. A coisa que mais gosto de fazer é
ler. Sábado e domingo, depois do almoço, gosto de sentar e ler, ficar
sozinho em silêncio absoluto.
PODER: E o que gosta de ler?
PN: Sobre medicina ou história. Agora estou
lendo um livro antigo, chamado Bandeirantes e Pioneiros, do Vianna
Moog, no qual ele compara a colonização dos Estados Unidos com a do
Brasil. E discute por que os Estados Unidos, com 100 anos a menos que o
Brasil, tiveram um enriquecimento e um progresso tão rápidos. Por que
um país se desenvolveu em progressão geométrica e o outro em progressão
aritmética.
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