DOUTOR ADVOGADO E DOUTOR MÉDICO: Até quando?
Por ELIANE BRUM
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou
mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um
romance - Uma Duas (LeYa) -
e de três livros de reportagem: Coluna
Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago
Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho
da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada.
elianebrum@uol.com.br
@brumelianebrum (Foto: ÉPOCA ) |
Por que o uso da palavra “doutor” antes do nome de
advogados e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?
Sei muito
bem que a língua, como coisa viva que é, só muda quando mudam as pessoas, as
relações entre elas e a forma como lidam com o mundo. Poucas expressões humanas
são tão avessas a imposições por decreto como a língua. Tão indomável que até
mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos, acabamos deixando escapar palavras
que faríamos de tudo para recolher no segundo seguinte. E talvez mais vezes
ainda pretendêssemos usar determinado sujeito, verbo, substantivo ou adjetivo e
usamos outro bem diferente, que revela muito mais de nossas intenções e
sentimentos do que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi construída com os
tijolos de nossos atos falhos. Exerço, porém, um pequeno ato quixotesco no meu
uso pessoal da língua: esforço-me para jamais usar a palavra “doutor” antes do
nome de um médico ou de um advogado.
Travo
minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem de inocente.
Se usamos as palavras para embates profundos no campo das ideias, é também na
própria escolha delas, no corpo das palavras em si, que se expressam relações
de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo de um idioma carrega uma teia
de sentidos que vai se alterando ao longo da História, alterando-se no próprio
fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é uma
praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas
mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é preciso
estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.
Assim,
minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de resistência cotidiana,
exercido de forma solitária na esperança de que um dia os bons dicionários
digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo:
no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os mais ricos e também para
marcar a superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade
socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em
desuso”.
Em minhas
aspirações, o sentido da palavra perderia sua força não por proibição, o que
seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário, na qual às vezes resvalam
alguns legisladores, mas porque o Brasil mudou. A língua, obviamente, só muda
quando muda a complexa realidade que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.
Historicamente,
o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira como uma forma de tratar os
superiores na hierarquia socioeconômica – e também como expressão de racismo.
Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais ricos, de os que não puderam
estudar tratarem os que puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem
aqueles que sempre os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua
portuguesa como uma palavra inocente, mas como um fosso, ao expressar no idioma
uma diferença vivida na concretude do cotidiano que deveria ter nos
envergonhado desde sempre.
Lembro-me
de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um carregador de malas do
Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna semanal de reportagem
que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora, intitulada “A Vida Que Ninguém
Vê”. Um
- E como
os fregueses o chamam?
- Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.
- O
senhor chama eles de doutor?
- Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como
vai, doutor, é pra já, doutor....
- É esse
o segredo do serviço?
- Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara
importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo.
Então, tenho que me botar no meu lugar.
A forma
como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir da forma como os
outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo – contam-nos séculos de
História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas décadas – e
especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro para tratar o
condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão, pelo engraxate para
tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco não desapareceu – mas pelo
menos está arrefecendo.
Se
alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o outro de “doutor”, é
legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou ironizando, porque
parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que a forma de tratamento
adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante assinalar, reflete
também a mudança de um país no qual o presidente mais popular da história
recente é chamado pelo nome/apelido. Essa contribuição – mais sutil, mais
subjetiva, mais simbólica – que se dá explicitamente pelo nome, contida na
eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento, independentemente das
críticas que se possa fazer ao ex-presidente e seu legado.
Se o “doutor”
genérico, usado para tratar os mais ricos, está perdendo seu prazo de validade,
o “doutor” que anuncia médicos e advogados parece se manter tão vigoroso e
atual quanto sempre. Por quê? Com tantas mudanças na sociedade brasileira,
refletidas também no cinema e na literatura, não era de se esperar um declínio
também deste doutor?
Ao
pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna, deparei-me com artigos
de advogados defendendo que, pelo menos com relação à sua própria categoria, o
uso do “doutor” seguia legítimo e referendado na lei e na tradição. O principal
argumento apresentado para defender essa tese estaria num alvará régio no qual
D. Maria, de Portugal, mais conhecida como “a louca”, teria outorgado o título
de “doutor” aos advogados. Mais tarde, em 1827, o título de “doutor” teria sido
assegurado aos bacharéis de Direito por um decreto de Dom Pedro I, ao criar os
primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil. Como o decreto
imperial jamais teria sido revogado, ser “doutor” seria parte do “direito” dos
advogados. E o título teria sido “naturalmente” estendido para os médicos em
décadas posteriores.
Há,
porém, controvérsias. Em consulta à própria fonte, o artigo 9 do decreto de D.
Pedro I diz o seguinte: “Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos
Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também
o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os
requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que
o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes”. Tomei a liberdade de
atualizar a ortografia, mas o texto original pode ser conferido aqui. “Lente” seria o equivalente hoje à livre-docente.
Mesmo que
Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o título de “doutor”, o
que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros do Direito, garantiria
a legitimidade do título: como é que um decreto do Império sobreviveria não só
à própria queda do próprio, mas também a tudo o que veio depois?
O fato é
que o título de “doutor”, com ou sem decreto imperial, permanece em vigor na
vida do país. Existe não por decreto, mas enraizado na vida vivida, o que torna
tudo mais sério. A resposta para a atualidade do “doutor” pode estar na
evidência de que, se a sociedade brasileira mudou bastante, também mudou pouco.
A resposta pode ser encontrada na enorme desigualdade que persiste até hoje. E
na forma como essas relações desiguais moldam a vida cotidiana.
É no dia
a dia das delegacias de polícia, dos corredores do Fórum, dos pequenos
julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder sobre o cidadão
“comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo tanto das vítimas
quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses doutores, no qual o título era
uma expressão importante da desigualdade no acesso à lei. No início, ficava
estarrecida com o tratamento usado por delegados, advogados, promotores e
juízes, falando de si e entre si como “doutor fulano” e “doutor beltrano”. Será
que não percebem o quanto se tornam patéticos ao fazer isso?, pensava. Aos
poucos, percebi a minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços, tinha uma
função fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e assegurar a
submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente compreendiam que a
Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal, no amplo sentido do
termo.
No caso
dos médicos, a atualidade e a persistência do título de “doutor” precisam ser
compreendidas no contexto de uma sociedade patologizada, na qual as pessoas se
definem em grande parte por seu diagnóstico ou por suas patologias. Hoje, são
os médicos que dizem o que cada um de nós é: depressivo, hiperativo, bipolar,
obeso, anoréxico, bulímico, cardíaco, impotente, etc. Do mesmo modo, numa época
histórica em que juventude e potência se tornaram valores – e é o corpo que
expressa ambas – faz todo sentido que o poder médico seja enorme. É o médico,
como manipulador das drogas legais e das intervenções cirúrgicas, que
supostamente pode ampliar tanto potência quanto juventude. E, de novo
supostamente, deter o controle sobre a longevidade e a morte. A ponto de alguns
profissionais terem começado a defender que a velhice é uma “doença” que poderá
ser eliminada com o avanço tecnológico.
O
“doutor” médico e o “doutor” advogado, juiz, promotor, delegado têm cada um
suas causas e particularidades na história das mentalidades e dos costumes. Em
comum, o doutor médico e o doutor advogado, juiz, promotor, delegado têm algo
significativo: a autoridade sobre os corpos. Um pela lei, o outro pela
medicina, eles normatizam a vida de todos os outros. Não apenas como
representantes de um poder que pertence à instituição e não a eles, mas que a
transcende para encarnar na própria pessoa que usa o título.
Se
olharmos a partir das relações de mercado e de consumo, a medicina e o direito
são os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela porta do escritório ou
do consultório, em geral já está automaticamente numa posição de submissão. Em
ambos os casos, o cliente não tem razão, nem sabe o que é melhor para ele. Seja
como vítima de uma violação da lei ou como autor de uma violação da lei, o
cliente é sujeito passivo diante do advogado, promotor, juiz, delegado. E, como
“paciente” diante do médico, como abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para tornar-se objeto
de intervenção.
Num país
no qual o acesso à Justiça e o acesso à Saúde são deficientes, como o Brasil, é
previsível que tanto o título de “doutor” permaneça atual e vigoroso quanto o
que ele representa também como viés de classe. Apesar dos avanços e da própria
Constituição, tanto o acesso à Justiça quanto o acesso à Saúde permanecem, na
prática, como privilégios dos mais ricos. As fragilidades do SUS, de um lado, e
o número insuficiente de defensores públicos de outro são expressões dessa
desigualdade. Quando o direito de acesso tanto a um quanto a outro não é
assegurado, a situação de desamparo se estabelece, assim como a subordinação do
cidadão àquele que pode garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no
cotidiano. Sem contar que a cidadania ainda é um conceito mais teórico do que
concreto na vida brasileira.
Infelizmente,
a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores” advogados, juízes,
promotores, delegados etc estimulam e até exigem o título no dia a dia. E
talvez o exemplo público mais contundente seja o do juiz de Niterói (RJ) que,
em 2004, entrou na Justiça para exigir que os empregados do condomínio onde
vivia o chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante da sua exigência,
o zelador retrucava: “Fala sério....” Não conheço em profundidade os fatos que
motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito significativo que, como
solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um tratamento que começava
a lhe faltar no território da vida cotidiana.
É
importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e advogados,
juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado para eliminar essa
distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser chamados pelo nome. Ou por
senhor ou senhora, caso o interlocutor prefira a formalidade – ou o contexto a
exija. Sabem que essa mudança tem grande força simbólica na luta por um país
mais igualitário e pela ampliação da cidadania e dos direitos. A estes, meu
respeito.
Resta
ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado por aqueles que fizeram
doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral isso significa, entre o
mestrado e o doutorado, cerca de seis anos de estudo além da graduação. Para se
doutorar, é preciso escrever uma tese e defendê-la diante de uma banca. Neste
caso, o título é – ou deveria ser – resultado de muito estudo e da produção de
conhecimento em sua área de atuação. É também requisito para uma carreira
acadêmica bem sucedida – e, em muitas universidades, uma exigência para se
candidatar ao cargo de professor.
Em geral,
o título só é citado nas comunicações por escrito no âmbito acadêmico e nos
órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e na publicação de artigos
em revistas científicas e/ou especializadas. Em geral, nenhum destes doutores é
assim chamado na vida cotidiana, seja na sala de aula ou na padaria. E, pelo
menos os que eu conheço, caso o fossem, oscilariam entre o completo
constrangimento e um riso descontrolado. Não são estes, com certeza, os
doutores que alimentam também na expressão simbólica a abissal desigualdade da
sociedade brasileira.
Estou bem
longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço apenas uma provocação para
que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece soar tão natural, eterno e
imutável – mas é resultado do processo histórico e de nossa atuação nele.
Estranhar é o verbo que precede o gesto de mudança. Infelizmente, suspeito de
que “doutor fulano” e “doutor beltrano” terão ainda uma longa vida entre nós.
Quando partirem desta para o nunca mais, será demasiado tarde. Porque já é
demasiado tarde – sempre foi.
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