PRIMAVERA BRASILEIRA
Por Alberto Dines
No Velho Testamento eles aparecem como líderes,
sábios, depois foram substituídos pelos reis e três mil anos depois, neste
esplêndido pedaço do mundo chamado Brasil, juízes estão na berlinda, candidatos
ao banco dos réus. E, se a pendência entre a AMB e o CNJ acirrar-se, a toga
corre o risco de perder a aura de solenidade que a envolve.
A administração da justiça contém ritos
fascinantes, a submissão ao poder das leis produz um dos mais belos espetáculos
que a sociedade humana já inventou. Um júri diferente, porém, começa a empolgar
o país e ele não favorece a Associação dos Magistrados Brasileiros no seu
pleito contra a independência do Conselho Nacional de Justiça.
O confronto doutrinário que a entidade dos juízes
pretendia provocar já não consegue esconder uma inequívoca motivação
corporativista. O Estado de Direito que visa aperfeiçoar está negando um dos
princípios básicos da mecânica democrática: cada poder deve ser equilibrado por
um contra-poder. O Estado moderno é necessariamente descentralizado. A bandeira
do “controle externo” embutida na criação do Conselho Nacional de Justiça é
herdeira de outra, veneranda, a do equilíbrio entre os poderes para acabar com
o absolutismo.
Contra o corporativismo
A ação de inconstitucionalidade impetrada pela
AMB contra as prerrogativas constitucionais do CNJ desvenda um dos nossos
paradoxos nucleares: aqueles que deveriam zelar pela aplicação das leis estão
em pé de guerra contra os que pretendem cumprir as leis investigando e punindo
juízes acusados de desvios de conduta.
A prepotência insurge-se contra a coerência. A
investida da corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon, contra aqueles que
deslustram a toga é quixotesca, mas não é fantasiosa, seria inacreditável se
não representasse a pura verdade: tramitam na corregedoria 115 processos contra
juízes de primeira instância e 35 contra desembargadores. A presidente do
Tribunal de Justiça do Tocantins está sendo acusada de pertencer a um esquema
de venda de sentenças que ficará impune caso a AMB consiga cercear o CNJ.
Em seis anos de existência, o CNJ e sua
corregedoria puniram 49 juízes por desvios de conduta, enfrentaram o nepotismo,
extinguiram benefícios abusivos e, sobretudo, estabeleceram metas de desempenho
para acabar com a lentidão judicial, a grande cúmplice da impunidade. Segundo
denúncia do Estado de S. Paulo de sexta-feira (28/9), 18 dos 29 corregedores de
tribunais respondem ou já responderam a processos do próprio órgão. Em 2011, no
Tribunal de Justiça de São Paulo foram punidos apenas seis magistrados, 460
denúncias foram arquivadas.
A OAB insurgiu-se contra o corporativismo da AMB,
também a Procuradoria Geral da República, também senadores da situação e da
oposição esqueceram suas diferenças e apresentaram uma Proposta de Emenda
Constitucional mantendo os poderes do CNJ garantidos desde 2004 pelo artigo
103-B.
Letra da lei
Não é de hoje que a ABI – Associação Brasileira
de Imprensa acusa o judiciário de ser a grande fábrica de mordaças e atos
censórios da República. O mesmo Estadão está obrigado há mais de dois anos pelo
Tribunal de Justiça de Brasília a silenciar sobre a Operação Boi Barrica da
Polícia Federal que investiga os negócios do clã Sarney. As provas coletadas
nesta operação pela PF foram consideradas nulas por outro tribunal.
A querela transcende ao Judiciário. O Estado
brasileiro parece aturdido, perplexo, incapaz de enxergar as luzes que começam
a ser acionadas. O espírito das leis começa a impor-se à letra da lei. Este é o
espírito da primavera brasileira empurrada por duas destemidas juízas: Patrícia
Acioly, fuzilada em Niterói pelos policiais corruptos que investigava e a brava
Corregedora Nacional de Justiça, que nos lembrou algo comezinho: bandidos
também usam togas.
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