Vitão e os biodinâmicos contra os SUV e as bebidas transnacionais

Mauricio Tagliari                                                                             
Muitos da minha geração, que como eu são ateus, tiveram sua formação intelectual pautada pela "santíssima trindade": Marx, Freud e Darwin. As ideias dos dois judeus e do cientista britânico permearam as leituras e definiram muitos dos interesses daqueles que, independentemente de militar em um partido, fazer análise ou ser biólogo, fizeram universidade antes da queda do Muro de Berlim e da ascensão dos cristãos criacionistas na América do Norte, e de evangélicos, no Brasil.

Noves fora o delírio criacionista, Darwin segue como o único dos três que permanece incontestável no Olimpo da ciência séria. Injustiça. Pode-se discordar das propostas de Karl Marx, mas a cada dia sua análise sobre o capitalismo merece mais atenção. As tais crises cíclicas não param de nos "surpreender".
Freud é atacado como antiquado, a terapia analítica seria lenta e ineficaz no mundo de hoje e o tratamento dos males psíquicos é cada vez mais baseado no uso de drogas. Esquecem-se de que Freud também prescrevia o uso drogas e esperava novas descobertas de terapias químicas no futuro.
Uma de suas obras mais interessantes é O Mal-Estar da Civilização, que sai em nova tradução pela Companhia das Letras. Um livro com um título desses é irresistível. Só perde para os títulos dos filmes de Buñuel ( O Anjo Exterminador, Esse Obscuro Objeto de Desejo, O Fantasma da LIberdade, e a lista segue...).

Nesse seu texto, o velho Sig especula sobre as pulsões básicas da humanidade: prazer e destruição. Eros e Tanatos. Curiosamente, o budismo (e aqui o descrevo em poucas e resumidas palavras) localiza a infelicidade humana na frustração de não se ter o que se deseja e a aversão ou o medo de ser atingido por algo que não se quer. Consigo enxergar as conexões com a Seleção Natural e a teoria de Marx. Mas o espaço é curto para demonstrar. Penso só no título: O Mal-Estar da Civilização.
E por que falar disso numa coluna sobre bebidas? Não, este Mal-Estar não é uma prosaica ressaca. É algo bem mais sério. O que querem dizer 156 mortes em acidentes de trânsito por dia no Brasil (aproximadamente 6 por hora)? O que significam 14 colisões com postes numa única madrugada de sábado, em São Paulo? O que nos ensina a triste morte de Vitor Gurman, numa pacata rua da Vila Madalena, o bairro mais boêmio da cidade?

Os números são escandalosos. Descrevem uma guerra. Mais uma das que o brasileiro cordial e cruel se acostuma a travar sem nem perceber. O problema é que estamos nas guerras erradas. Vivemos um momento de crescimento econômico e ascensão de classes menos favorecidas. Mas são tantas as coisas visivelmente deterioradas, tantos os sinais de valorização do que é supérfluo e vazio, seja o sucesso do BBB, do culto à celebridade ou da erotização infantil ou ainda da baixa qualidade da música popular de massas, que só me reforçam a certeza de que o pior a acontecer neste país foi a desvalorização da educação.
Tantas leis, tantas propostas, Enem, etc. e no final temos uma massa sem senso crítico e buscando somente diversão. Não sejamos hipócritas. Todos queremos nos divertir. Mas a sociedade do espetáculo nos aliena. Engana e faz pensar que estamos nos divertindo, quando na verdade estamos só consumindo.

No caso do álcool, já discutimos aqui, em outras ocasiões, a diferença de atitude no mundo latino-mediterrâneo versus o dos germânicos, anglo-saxões e até tupinambás. Enquanto os primeiros pregam a moderação (simposium era o momento de sorver vinho com água num debate em torno de um tema dado) e defendem o consumo do vinho como alimento, os "bárbaros" historicamente se embriagam.

A diferença é que o faziam de forma ritual, em comemorações comunais ou preparativos para a batalha, quando todo um grupo social se embebedava e ia dormir depois de uma caminhada, quando muito. Não se dirigiam Porsches ou Landrovers na madrugada.

Mais perguntas: a Lei Seca faz sentido? Precisamos de tantos SUV circulando no asfalto desta e de outras metrópoles? A propaganda de cerveja que transmite a mensagem de que só bebendo tal marca você vive cercado de amigos e gente bonita deve ser proibida? Ou toda propaganda de bebida deveria ser proibida?

Pessoalmente sou contra proibições. Defendo uma educação etílica dirigida ao consumo moderado e responsável. Mas quem vai ensinar? A escola não ensina nem matemática ou português direito. As famílias também, em sua maioria, não possuem o conhecimento necessário. Pais que não sabem beber também não podem ensinar consumo etílico aos filhos.

Ao ler Freud, noto que ele nos aponta o instinto destrutivo vencendo aqui. Marx, por sua vez, nos diria que a sociedade capitalista de consumo não sustentável chegou num ponto em que a afluência gera uma alienação tal que assume atitude autodestrutiva.

Minha crença é que o capitalismo e seus tentáculos midiáticos são responsáveis diretos por esta situação. Coloco uma questão simples: quantos destes acidentes, quando causados por alcoolizados foram após o consumo de vinhos, cachaças ou cervejas artesanais? E quantos foram após o consumo de alguma bebida produzida por uma mega empresa transnacional? Aposto que 100% usaram bebidas industrializadas.

Quem consome bebida artesanal de qualidade não está em busca de fuga da realidade e sim de autoconhecimento. Enquanto conglomerados empresariais aumentam seus lucros e padronizam a qualidade de bebidas pelo mundo afora, os produtores de vinho que buscam cada vez mais o cultivo orgânico ou biodinâmico, o respeito ao meio ambiente e ao terroir são genuínos representantes do outro lado da moeda.

Mauricio Tagliari é compositor e produtor musical. Sócio da ybmusic, escreve sobre música e bebidas no blog www.maisumgole.wordpress.com e sobre música no http://ybmusica.blogspot.com. É co-autor do Dicionário do Vinho Tagliari e Campos.
Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5282643-EI13996,00-Vitao+e+os+biodinamicos+contra+os+SUV+e+as+bebidas+transnacionais.html

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