POR QUE SOU ESPIRITUALISTA
Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original de 12/3/07 – versão 3.0 de 6/3/11; see also the English version
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Original de 12/3/07 – versão 3.0 de 6/3/11; see also the English version
Indice
1. Introdução
2. Materialismo vs. espiritualismo
3. A ciência materialista
4. Evidências universais
4.1 Origem e limites do universo
4.2 Outras características do universo
4.3 Formas dos seres vivos
5. Evidências pessoais
5.1 Pensamento
5.2 Sentimentos
5.3 Vontade
5.4 Memória
6. Como algo não físico pode atuar sobre algo físico?
7. Um novo paradigma científico
8. A hipótese existencial fundamental
9. Consequências das visões materialista e espiritualista
10. Existe uma cosmovisão espiritualista satisfatória?
11. Resumo das hipóteses de trabalho e conclusões
12. Referências
2. Materialismo vs. espiritualismo
3. A ciência materialista
4. Evidências universais
4.1 Origem e limites do universo
4.2 Outras características do universo
4.3 Formas dos seres vivos
5. Evidências pessoais
5.1 Pensamento
5.2 Sentimentos
5.3 Vontade
5.4 Memória
6. Como algo não físico pode atuar sobre algo físico?
7. Um novo paradigma científico
8. A hipótese existencial fundamental
9. Consequências das visões materialista e espiritualista
10. Existe uma cosmovisão espiritualista satisfatória?
11. Resumo das hipóteses de trabalho e conclusões
12. Referências
Quando escrevi um artigo sobre a pena de
morte, motivado pela discussão aberta com a tragédia ocorrida no Rio de
Janeiro com o menino João Hélio, abordei um aspecto que não é encontrado nas
discussões sobre o assunto. Em geral, pensa-se exclusivamente na proteção da
sociedade e, eventualmente, diminuir seus gastos com o confinamento de
assassinos. O aspecto mais importante que se considera do ponto de vista do
indivíduo que cometeu o crime é que ele deve pagar pelo que fez. Naquele
artigo, abordei um outro aspecto individual. Considerando cada ser humano como
um ser que possui uma essência não física, e que sua vida tem como finalidade o
aperfeiçoamento dessa essência, argumentei que não tínhamos o direito de matar
ninguém, e portanto impedir seu desenvolvimento; talvez, para seu
desenvolvimento, ele precise passar pela experiência de conviver com a
lembrança de seus atos e sentir a consequência dos mesmos. Além disso, não se
pode prever se um criminoso não vai se regenerar e produzir algo positivo e
essencial para a humanidade. Infelizmente, às vezes é necessário confinar uma
pessoa perigosa para a sociedade, mas isso não significa executá-la.
Esse argumento só faz sentido quando se supõe, como hipótese de
trabalho, a existência daquela essência não física no ser humano. Quando
escrevi aquele artigo, pus-me a justificar por que adotava essa hipótese.
Percebi, então, que me alongava demais; assim, resolvi escrever o presente
artigo, para poder referenciá-lo no anterior e entrar aqui em muito mais
detalhes sobre o tema do presente título. Como o assunto é delicado, pois vai
contra a mentalidade materialista imperante hoje no mundo (como veremos,
inclusive em muitos meios que se dizem religiosos), foi necessário estender-me
bastante.
Como se verá, as ideias aqui expostas não são as comuns que se encontram
em escritos que abordam o espírito e o espiritualismo. Para evitar de pronto
mal-entendidos, devo deixar claro que não sou espírita, pois não considero o
mediunismo um caminho de conhecimento adequado para o ser humano moderno. Devo
também dizer que sou um espiritualista que procura preservar o que há de mais
importante na contribuição científica moderna: a clareza de pensamento, a
observação sem preconceitos, a descrição de fenômenos e a formulação de ideias
por meio de conceitos e não de sentimentos. Meu enfoque científico é um
superconjunto próprio do enfoque científico materialista corrente, isto é, como
veremos no item 3, admito todos os fatos científicos, e vários
julgamentos científicos, mas também admito outros que escapam à ciência
materialista atual.
No item 2 caracterizo o que entendo por materialismo e espiritualismo,
traçando brevemente a evolução da história do pensamento sob esse prisma. No
item 3 argumento que a ciência atual é materialista, e nos 4 e 5 apresento
evidências que corroboram a hipótese espiritualista, tanto do ponto de vista do
universo como pessoal de cada ser humano, isto é, observável por qualquer
pessoa em si mesmo. No item 6 exponho minha teoria para uma questão milenar:
como se pode compreender que algo não físico pode atuar sobre algo físico? No
item 7, mostro como se poderia expandir o paradigma científico de hoje para
investigar o mundo não físico. No item 8, discorro sobre o fato de que cada
pessoa deve escolher a hipótese materialista ou a espiritualista e orientar sua
vida segundo a mesma, e no 9 abordo as consequências de se escolher uma ou
outra, fazendo uma incursão no pensamento religioso tradicional. No item 10,
mostro que existe uma cosmovisão espiritualista que considero satisfatória, e
dou suas características gerais, e no 11 faço um resumo de minhas hipóteses de
trabalho e tiro breves conclusões. No item 12 dou algumas poucas referências
bibliográficas adicionais às citações, feitas no texto, de alguns de meus
artigos que estão em meu site.
Este é um assunto delicado; como abordo enfoques não tradicionais,
convido os leitores a enviarem suas reações, comentários e sugestões (ver meu
endereço de e-mail no topo de minha home page).
Depois de escrito este artigo, escrevi o "Ciência, religião e
espiritualidade", que complementa o presente em vários aspectos. Por exemplo, nele
eu caracterizo o que chamei de "espiritualismo científico", que é o a
minha concepção de mundo.
Abordo aqui duas visões de mundo mutuamente exclusivas sobre o ser
humano e o universo: a materialista e a espiritualista. Caracterizo a visão de
mundo materialista como sendo a que considera que tudo no universo, em
particular o ser humano, é um sistema puramente físico, sujeito exclusivamente
ao comportamento físico da matéria ou da energia.
A cosmovisão espiritualista aqui adotada como hipótese de trabalho – e
não como crença ou fé – considera que, nos seres vivos, em particular no ser
humano, bem como no universo, existem processos, que não são redutíveis a
processos físicos e aos quais me referirei genericamente como "não
físicos". Adoto essa nomenclatura para evitar confusões a respeito da
expressão "processos espirituais". Mostrarei nos capítulos 4 e 5 que
não é difícil admitir a hipótese da existência de processos não físicos, expondo
para isso evidências que considero muito fortes, que qualquer um pode encontrar
no universo, nos seres vivos e dentro de si próprio. Essas evidências dão
confiança para se admitir a hipótese espiritualista. Como veremos, considero
que os fenômenos não físicos podem em certos casos influenciar os fenômenos
físicos; veremos também como entender que essa influência possa existir.
É óbvio que no universo e nos seres vivos existem a matéria e a energia
físicas. Já os fenômenos não físicos não são aparentes, pois nossos sentidos
físicos e todos os instrumentos fabricados detectam exclusivamente fenômenos
físicos.
Se hoje não temos mais a percepção do mundo não físico, isso claramente
não ocorria na antiguidade. Por exemplo, na velha Índia dava-se mais
importância ao mundo não físico, associando-se a ele mais realidade do que ao
mundo físico, que era considerado Maia, uma ilusão. Pode-se admitir
que a percepção dos fenômenos supra-sensoriais que havia naquela época era mais
clara do que a dos fenômenos físicos, pois os órgãos dos sentidos não haviam
ainda se desenvolvido como foi ocorrendo aos poucos até atingirem a clareza que
existe desde pelo menos o século XV. Além disso, o pensar não tinha se
desenvolvido como ocorreu mais tarde; assim, o que era percebido como fenômeno
não físico não era transmitido conceitualmente, mas sim por meio de imagens
escritas ou parábolas. Uma tradição de que existia um mundo não físico por
detrás do físico perdurou por milênios. Todos os mitos e escritos antigos,
desde o mais antigo que restou escrito, a lenda de Guílgamesh, passando pela
Baghavad Guita, vários livros dos mortos e a Bíblia, tratam o mundo não físico
como uma realidade. Mas, aos poucos, o ser humano foi "caindo" cada
vez mais na matéria, e o que era antes considerado como realidade perceptível a
órgãos não físicos no ser humano foi, com a decadência desses órgãos,
permanecendo apenas como intuição vaga ou tradição. A partir do séc. XV o ser
humano dirigiu decisivamente cada vez mais para suas impressões sensoriais, e
com isso voltou-se preponderantemente para o universo físico, chegando até a
negar completamente a existência de um mundo não físico. A primeira
manifestação escrita disso parece ser a de J.O. de la Métrie, que em 1748
publicou seu livro L’Homme Machine, uma demonstração de que naquela
época já se começava a duvidar que o ser humano pudesse ser algo mais do que um
sistema puramente físico. Esse desenvolvimento foi acompanhado de uma clareza
conceitual cada vez maior, iniciada com os antigos filósofos gregos.
Note-se que é errado considerar o ser humano como sendo uma máquina,
pois todas as máquinas foram projetadas e construídas por seres humanos
(eventualmente, com ajuda de outras máquinas), e nenhum ser humano foi
projetado ou construído (alguns podem até ter sido bem planejados pelos pais,
mas certamente não foram projetados e nem construídos...). Por isso usei a
expressão de que o ser humano seria, na concepção materialista, um
"sistema físico" e não uma "máquina", como se costuma dizer
modernamente. Ultimamente, tenho adotado uma posição bastante radical: nos
seres vivos, não há absolutamente nada de puramente mecânico. Tome-se, por
exemplo, um movimento de um braço. Poder-se-ia dizer, numa primeira
aproximação, que ele comporta-se como uma alavanca, alguns músculos se contraindo
e outros se expandindo. Mas nenhuma alavanca tem a complexidade dos músculos de
nossos braços e do seu movimento correspondente. De fato, considere-se que os
músculos são formados por miríades de fibras, que por sua vez são formadas por
células. As fibras interagem entre si, bem como as células. Assim, o movimento
final é o resultado de um sistema de uma complexidade enorme. Nenhuma alavanca
jamais foi projetada e construída com essa complexidade, e pode-se duvidar que
será possível projetar e construir um sistema mecânico funcionando precisamente
como nossos músculos. Além disso, por que as fibras dos músculos contraíram ou
expandiram? Suponha que alguns impulsos elétricos produziram essas ações.
Ótimo, mas qual foi a origem desses impulsos? Suponha que eles foram gerados
pela medula ou pelo cérebro. Muito bem, mas o que fez esses últimos gerarem
esses impulsos? Se a sequência de causas e efeitos de qualquer processo em um
ser vivo foi seguida dessa maneira, sempre se chega a um ponto em que é necessário
dizer "não sabemos". Mas em qualquer máquina sabemos precisamente por
que algum movimentou ou ação é tomada, e a função de cada parte. Além disso, é
possível substituir qualquer parte de uma máquina por uma outra similar. Em
seres vivos, esse não é o caso. Por exemplo, se uma célula é extraída de um
corpo vivo, ela não é mais a célula original – ela não funciona exatamente como
ela funcionava no local original, por que depende de seu ambiente e de todo o
organismo. Se uma parte de um organismo vivo é substituída, vai levar algum
tempo até que ela seja adaptada àquele organismo, e seu funcionamento nunca
será exatamente o mesmo que a parte original. De fato, cada ser vivo é uma
totalidade, e esta é influenciada por cada uma de suas partes, e cada parte influencia
o todo.
Obviamente, um materialista discordará da expressão que usei acima, de
que "claramente" na antiguidade havia alguma percepção de fenômenos
não físicos, já que para ele esses fenômenos não existem. No item 9 mostrarei a
consequência dessa discordância.
A visão materialista de mundo é a visão dominante na ciência moderna. O
argumento típico é "Todos os fenômenos são puramente físicos, e não há
outra possibilidade." Esse é um preconceito que simplesmente limita a pesquisa
científica. Pelo fato de que, para quase todos os cientistas, essa posição não
estar sujeita a discussão, denomino-a de "Dogma Central da Ciência
Contemporânea" (DCCC). Por exemplo, usando o DCCC os neurólogos e
cientistas da cognição partem do princípio de que o pensamento é gerado pelo
cérebro físico. Eles expandiriam enormemente sua pesquisa se fizessem a
hipótese de que as atividades mentais não são físicas, e alguns fenômenos que
encontramos no cérebro e nos neurônios são consequência dessas atividades, e
não sua origem. Voltarei à questão das atividades mentais no item 5.
Um outro exemplo do DCCC é a teoria da evolução neo-darwinista. Ela
tenta mostrar que a evolução dos seres vivos é devida exclusivamente a causas
físicas: as mutações genéticas e a seleção natural. No entanto, a sabedoria que
é encontrada nos seres vivos sugere algum planejamento e algum objetivo, que
talvez influenciaram a evolução. Não é difícil expandir a evolução darwinista
para englobar planejamentos e objetivos não físicos, isto é, um "projeto
inteligente" (intelligent design – veja-se uma carta que escrevi ao
editor da revista Scientific American a esse respeito): basta supor que nem
todas as mutações e nem todas as seleções naturais foram casuais. Note-se que o
"projeto inteligente" não precisa ser feito de uma só vez por uma
entidade abstrata que muitos chamam de Deus, como em geral querem os
criacionistas religiosos, mas poderia ser comandada por elementos não físicos
presentes em cada ser vivo ou ligados a cada espécie de ser vivo e seguir
tentativas ao longo do tempo, aperfeiçoando o modelos das várias espécies e a
interação entre elas. Note-se que não estou dizendo que não houve evolução; o
que estou propondo é que a evolução não foi totalmente aleatória. No item 11
exporei um possível objetivo para a evolução. Observe-se que fui cauteloso e
usei a expressão "não foi totalmente aleatória", abrindo espaço para
se continuar com a visão neo-darwinista em alguns casos.
Em particular, uma evolução puramente casual, baseada exclusivamente em
forças físicas, retira totalmente qualquer sentido à existência dos seres
vivos, do ser humano e do universo. Se alguém gostaria de admitir a hipótese de
que há um sentido para a vida, não pode adotar a evolução neo-darwinista como
hipótese, muito menos como verdade, como é comumente ensinada (erradamente) no
nível colegial e propalada em divulgações científicas populares. Aliás, vale a
pena lembrar que Alfred Russel Wallace, o famoso biólogo neo-zelandês, que
descobriu a teoria da seleção natural em paralelo e independentemente de
Darwin, dizia que leis aplicadas a animais não deviam ser simplesmente
transpostas aos seres humanos. Isso foi devido ao fato de ele ter concepções
espiritualistas, na verdade, espíritas, contrariamente a Darwin, que era
materialista. Isso fica claro na maneira como Wallace termina seu livro sobre
darwinismo: "Portanto vemos que o darwinismo, mesmo se levado às suas
últimas consequências, não contradiz a crença em um lado espiritual da natureza
do ser humano, porém de fato oferece a ela um apoio decisivo. O Darwinismo nos
mostra como o corpo humano desenvolveu-se de formas inferiores de acordo com a
lei da seleção natural. Mas ele também nos ensina que nós possuímos capacidades
intelectuais e morais, que não puderam ter sido desenvolvidas dessa maneira,
mas devem ter outra origem. Para essa origem só podemos encontrar uma causa no
mundo espiritual invisível." [HEM, p. 102.] De fato, parece-me que Wallace
é geralmente ignorado, principalmente na biologia do ensino médio, por causa do
preconceito generalizado em relação a uma visão espiritualista do mundo
(quantas pessoas no mundo que sabem que Darwin descobriu a teoria da seleção
natural também sabem que Wallace igualmente a descobriu?).
As dúvidas de Wallace quanto à explicação da evolução de capacidades
interiores do ser humano é parte da teoria da evolução corrente. Por exemplo, o
antropólogo Ian Tattersal expressa esse fato da seguinte maneira: "[...]
não podemos atribuir advento das capacidades cognitivas modernas simplesmente
como a culminação de uma tendência de desenvolvimento do cérebro ao longo do
tempo. Alguma coisa ocorreu além de um polimento [buffing-up] do
mecanismo cognitivo." [TAT, p. 44.] Em particular, o aparecimento da
linguagem é um grande mistério da evolução: "[...] temos que concluir que
o aparecimento da linguagem e os seus correlatos anatômicos não foi
impulsionado por seleção natural, por mais que essas inovações benéficas possam
parecer significantes a posteriori [in hidsight]."
[p. 49.]
Muitos cientistas dizem serem "céticos". "Cético",
segundo o dicionário eletrônico Aurélio Séc. XXI, é "uma
pessoa que duvida de tudo, um descrente." Curiosa definição: será que um
tal cético duvida da própria existência? Uma tal pessoa deveria pelo menos ser
esquizóide... De qualquer modo, uma pessoa cética não deveria ter preconceitos.
No entanto, não é o que se observa: em geral, os que se denominam
"céticos" duvidam de qualquer coisa que tenha a ver com religião, e
acreditam piamente em qualquer coisa que tenha um caráter científico. É óbvio
que não se deve duvidar de qualquer fato verdadeiramente científico; mas outra
coisa é acreditar nos julgamentos científicos, isto é, julgamentos baseados em
fatos e teorias científicas. Por exemplo, as medidas de decaimento radioativo
são fatos científicos. Usá-las para dizer que a Terra tem 6 bilhões de anos é
um julgamento científico. De fato, essa idade da Terra é obtida supondo que o
decaimento sempre foi o mesmo e fazendo uma extrapolação extremamente grosseira
(se se considerarem 60 anos de medidas muito precisas de decaimento radioativo,
teríamos uma extrapolação de 1:108). O correto, nesse caso, seria
dizer que "a extrapolação das medidas de decaimento radioativo dão um
resultado de 6 bilhões de anos", e não chamar isso de "idade da
Terra".
Além de se ter crenças em julgamentos científicos, uma outra atitude típica
dos que se dizem céticos é terem preconceitos e recusarem-se a estudar e
investigar qualquer coisa que tenha a ver com processos não físicos. Assim,
"céticos", na verdade, são simplesmente materialistas
preconceituosos. Um exemplo típico é o de Michael Shermer, que mantém uma
coluna na revista Scientific American e que se denomina de
cético (ver www.skeptic.com). Ele
claramente é um crente na ciência e preconceituoso em relação a qualquer ideia
sobre algo não físico que, em geral, ridiculariza.
Eu me considero um cético, no sentido de não ter preconceitos. Mas não
duvido de tudo: obviamente, não duvido nem de minha existência, nem de minhas
hipóteses de trabalho, enquanto não vejo evidências de elas estarem erradas – e
estou sempre disposto a revisá-las, isto é, não tenho crenças ou dogmas. Nesse
sentido, compreendo perfeitamente a atitude dos cientistas que conhecem apenas
o aparente espiritualismo de muitas religiões e crenças (compare-se a noção
espiritualista delas com a minha dada no item 2). Por exemplo, é óbvio que a
Gênese da Bíblia é uma imagem, e não uma descrição da realidade. Assim, tomar
aquelas imagens ao pé da letra, como por exemplo que os "dias" da
Criação são dias de 24 horas, ou dizer que a idade da Terra é de
aproximadamente 6.000 anos (o assim chamado "Criacionismo da
Terra Jovem" Young Earth Criationism), só pode provocar
oposição dos cientistas. As religiões tradicionais em geral apelam para a fé, e
não para a compreensão, que é permanentemente buscada, com razão, pelos
cientistas. Por outro lado, simplesmente ficar falando de Deus a toda hora,
independente da concepção – ou falta desta – que se tem dele/a, não faz uma
pessoa ser um espiritualista na caracterização que dei a essa visão. Voltarei a
essa questão no item 9.
A evidência exterior para a existência de processos não físicos que
considero mais contundente é a origem da matéria e da energia no universo.
Claramente essa origem não faz sentido físico. O que se considera
cientificamente é que essa origem seria devida a uma "descontinuidade no
espaço-tempo". Só que aí se trata de um raciocínio puramente matemático,
sem consistência física. Um outro enfoque tem sido supor-se que o universo
contrai-se e expande-se continuamente; mas, de um pondo de vista físico, como
esse processo começou? Alguns cosmólogos dizem que essas questões não fazem
sentido, de modo que elas são simplesmente ignoradas.
O argumento da origem da matéria e da energia é tão poderoso, que muitos
cientistas falam claramente em "momento da criação". No entanto,
praticamente todos eles, apesar de admitirem a influência de algo não físico no
"início" do universo, a fim de permanecerem dentro do materialismo e
do DCCC dizem que, depois da "criação", a natureza física foi deixada
a atuar por si própria, cessando toda e qualquer influência de algo não físico.
Curiosamente, são espiritualistas na criação da matéria e energia, e são
materialistas daí para frente...
Igualmente, as fronteiras do universo não fazem sentido físico. Não
adianta dizer-se que o nosso universo é como a superfície de uma bolha, que não
tem limites nas dimensões daquela superfície a qual, no caso do universo, seria
tridimensional. Toda bolha tem um espaço fora e dentro da mesma. O que estaria
nesses espaços em relação ao universo físico? Mesmo se esses "fora" e
"dentro" tivessem quatro dimensões (para que a superfície da bolha
tivesse três), esse espaço de quatro dimensões deveria ter projeções físicas em
três dimensões. Estou ciente da teoria dos universos múltiplos, baseada numa
especulação de que haveria infinitos universos. No entanto, essa é uma
fantasmagoria matemática que não creio valer a pena admitir como tendo
realidade física – de qualquer modo, é completamente não verificável na
prática.
Já que falei de espaço de quatro dimensões, talvez seria interessante
colocar aqui uma observação de Rudolf Steiner: se se deseja imaginar o mundo
não físico, não se deve pensar em quatro ou mais dimensões espaciais, mas sim
em duas. De fato, em um espaço de duas dimensões não existe matéria física,
pois, digamos, sua espessura seria nula.
Para exprimir resultados de medidas de experiências no nível atômico e
astronômico, a Física moderna necessita de elementos em suas fórmulas
matemáticas que são absolutamente incompreensíveis do ponto de vista do
conhecimento baseado em nossa experiência sensorial. Esse é o caso, por
exemplo, da relatividade do espaço-tempo e certos fenômenos quânticos, o que
pode indicar que no microcosmo atômico ou no macrocósmico astronômico a matéria
não se comporta de um ponto de vista "material" como podemos entender
a partir de nossa experiência sensorial. Isso ocorre, por exemplo, com a não
localidade quântica em que, independentemente da distância, uma partícula
transmite em tempo instantâneo seu estado para uma outra partícula a ela
"atrelada" (entangled). Ao se detectar o seu estado, a segunda
assume o mesmo estado da primeira (ver, por exemplo, [GRE, cap. 4]). Um outro
exemplo é o spin das partículas, que não é uma rotação como o nome
diz, pois tem características que não podem ser associadas a uma rotação (como
existir em torno de todos os eixos possíveis, e não em um só como toda rotação
que se preze). De fato, o spin da Mecânica Quântica não tem
limite clássico, isto é, não pode ser associado com uma energia conhecida e ser
compreendido com base em nossa experiência sensorial.
Outros exemplos são a "energia escura", que produziria a
repulsão que resulta na expansão do universo, formando ¾ do conteúdo do mesmo
[CON, p. 25] (mas não afeta "pequenas" distâncias como as de nossa
galáxia); a "matéria escura", que consistiria em 85% de toda a
matéria no universo [p. 27]; e o tempo, que nos é tão perceptível,
principalmente o "agora", que não ocorre na Física como seria de
esperar, pois em seus modelos matemáticos ele é sempre reversível [GRE, p.
131].
No nível das partículas atômicas, a dualidade partícula-onda também
parece-me uma indicação de que não se está mais no nível puramente físico.
Note-se que "onda" é um conceito mecânico que foi transportado
(indevidamente?) para um nível que talvez não seja mecânico. Isso se deu, por
exemplo, na conclusão de que a luz é ondulatória, a partir da experiência de
interferência: um feixe de luz passando por duas fendas finas e próximas,
dirigido a um anteparo atrás das fendas, provoca a alternância de zonas claras
e escuras com certas propriedades matemáticas simples que são usadas para se
calcular o comprimento da "onda". O máximo que se deveria afirmar
nessa experiência é que a luz, depois de interagir com as fendas, produz atrás
delas, no anteparo, um fenômeno ao qual se pode associar um comportamento
ondulatório; não se deveria afirmar algo sobre a natureza da luz antes de
interagir com as fendas e antes de provocar o efeito no anteparo! Dizer algo
sobre a natureza da luz antes da interação com as fendas e
antes de atingir o anteparo é uma especulação. Curiosamente, foi precisamente a
Mecânica Quântica que introduziu a ideia de que as experiências influenciavam o
comportamento das partículas, por exemplo o Princípio de Incerteza de
Heisenberg. Dever-se-ia obviamente considerar a possibilidade de que as fendas
e o anteparo alteram a natureza da luz.
A onda da mecânica quântica é uma onda de probabilidades. Mas esse é um
conceito puramente matemático; como é possível que conceitos puramente
matemáticos gerem fenômenos físicos? Seria o mesmo que simular os efeitos de um
incêndio no papel ou em um computador e sair correndo de medo de se queimar...
Além disso, essa onda de probabilidades transcende nossa capacidade de imaginar
e compreender a realidade que ela deseja expressar. Por exemplo, como é que uma
onda de probabilidade se propaga? Isso também parece-me indicar que
estamos lidando com algo que transcende o nível físico de nossos sentidos, a
base de todo o materialismo. Mas a mais forte indicação desse fato no nível
atômico é o fato de não se poder entender o que é uma partícula atômica.
Contrariamente à crença popular, induzida pela divulgação científica e pelo
ensino errado da ciência, o elétron não é uma bolinha diminuta e não orbita em
torno do núcleo (o modelo de 1910 de Rutherford). Se assim o fosse, ele iria
irradiar energia eletromagnética, pois para mudar de direção deve sofrer
aceleração, e qualquer corpo com carga elétrica que é acelerado irradia energia
eletromagnética, princípio de todas as antenas irradiantes. Como isso, o
elétron iria descrever uma espiral e cair no núcleo (veja-se, por
exemplo, http://library.thinkquest.org/19662/low/eng/exp-rutherford.html).
Tudo isso parece-me uma indicação de que a matéria microcósmica atômica
ou a macrocósmica astronômica transcendem o plano físico. Talvez nesses níveis
a matéria deixe de ter consistência puramente física – daí ter que ser descrita
por modelos matemáticos complexos, incompreensíves. Ocorre-me aqui também o
caso da Teoria das Cordas, para modelar o comportamento de partículas –
trata-se de um modelo com 11 dimensões, isto é, totalmente incompreensível.
Talvez a matéria seja simplesmente uma "condensação" de algo não
físico. Poder-se-ia supor que fenômenos não físicos, da natureza de nosso
pensamento, seriam a origem de tudo. Isso leva a um monismo do pensamento, em
lugar do monismo da matéria como é estabelecido pelo materialismo. Rudolf
Steiner foi um precursor dessa ideia [STE].
Para início de conversa, a "vida" é um grande mistério para a
ciência corrente. Mas mesmo fatos mais simples não podem ser explicados em
termos científicos atuais. Por exemplo, a extraordinária simetria existente em
algumas espécies, desde plantas as seres humanos, é uma grande questão em aberto.
Algumas espécies de borboletas têm fantásticos desenhos em suas asas. Como a
simetria dessas lindas figuras pode ser explicada? Uma explicação popular é que
a forma está nos genes. Mas o crescimento nos seres vivos não é preciso;
aparentemente, sempre há alguma variação aleatória, de modo que se poderia
esperar que a simetria não fosse tão precisa. É impossível imaginar uma pequena
parte de uma asa de uma borboleta comunicando à parte correspondente na outra
asa, de alguma maneira física, o quanto a primeira cresceu ou que cor atingiu,
de modo que a segunda siga a primeira, mantendo a simetria; acione aqui para
abrir uma nova janela em seu navegador, com fotos de borboletas mostrando essa
simetria. O mesmo acontece com nossas orelhas, que não param de crescer durante
toda a vida mas normalmente preservam uma boa dose de simetria. Se orelhas de
duas pessoas diferentes são comparadas, sua diferença é nítida; mas normalmente
as diferenças entre as orelhas de uma pessoa são geralmente muito pequenas. Há
plantas em que a ponta dos galhos ou das folhas formam uma curva típica para a
espécie, que podemos reconhecer com nosso pensamento.Acione aqui para
abrir uma nova janela com uma foto de uma folha de uma Costela de Adão (Monstera
deliciosa), mostrando bem nitidamente a típica curva formada pelas bordas
de cada parte de cada folha; acione aqui para
abrir uma nova janela com uma foto de uma palmeira mostrando claramente as
curvas seguidas pelas pontas das folhas de dois ramos grandes. Um outro exemplo
é a forma cônica de algumas espécies de pinheiros. Algumas espécies de
palmeiras parecem formar esferas com as pontas e partes finais dos galhos,
inclusive com curvas das últimas. Note-se as nossas samambaias: em muitas
espécies, as pontas dos raminhos que saem de ramos centrais formam curvas
típicas parecendo flechas alongadas.
Em todos os exemplos de plantas citados acima, como é que um ramo, ou a
ponta de uma folha, ou uma parte de uma folha, contam aos outros ramos, pontas
ou partes correspondentes quanto eles cresceram, para que os últimos cresçam na
mesma proporção, de modo que a forma global seja produzida e preservada durante
o crescimento e a regeneração? Aparentemente, as formas dos seres vivos parecem
seguir um modelo mental – e é por isso que as reconhecemos com
o nosso pensamento. Mas modelos mentais não são físicos, são puros pensamentos.
Explico as formas de seres vivos com o seguinte raciocínio: um modelo
arquetípico não físico, da mesma natureza que nosso pensamento (por isso
conseguimos captar mentalmente esse modelo), controla o crescimento e a regeneração
de tecidos e órgãos. Cada ser vivo e cada espécie tem tais modelos associados a
eles. Esses modelos não devem ser confundidos com desenhos de projetos, por
exemplo nas engenharias civil, mecânica e elétrica/eletrônica. Estes últimos
são modelos estáticos. É necessário imaginar o modelo que regula o crescimento
e a regeneração de um ser vivo como sendo um modelo dinâmico. Por exemplo,
tome-se a nossa popular mimosa de jardim, Acacia podalyriifolia,
que produz maravilhosos cachos de flores amarelas com o suave perfume
característico. As primeiras folhas que crescem em uma nova mimosa têm a forma
das folhas de uma acácia (e, curiosamente, encolhem-se à noite...), e não a
forma de chama de vela e a espessura das folhas felpudas típicas das mimosas já
um pouco crescidas ou grandes. Interessantemente, a nossa mimosa selvagem, que
dá menos flores, têm as folhas na forma das acácias. (Convido os leitores a
plantarem umas sementes de mimosa em um vaso para seguirem esses interessantes
passos.) Temos aqui um caso de modelos que controlam o crescimento das
primeiras folhas, e outros modelos para as folhas mais tardias. Se se
consideram os vários estágios de crescimento de qualquer parte de um ser vivo,
aparentemente há uma infinidade de diferentes modelos que são seguidos em
sequências bem determinadas. Nunca se deve extrapolar nossas experiências
sensoriais para o mundo não físico. Para captar e compreender a essência deste
último, é necessário desenvolver um novo tipo de pensamento dinâmico, vivo.
Observando a foto das Costelas de Adão, cujo vínculo está no parágrafo
anterior, pode-se notar como as folhas seguem modelos específicos coordenando o
crescimento das bordas das suas partes. Com nosso pensamento, nós imediatamente
reconhecemos a forma típica resultante; de fato, com ele nós completamos a
curva interrompida formada pelas terminações das partes das folhas; essa curva
faz parte da essência dos modeles seguidos pela planta.
Obviamente, o modelo não físico interage com a estrutura física de um
ser vivo, por exemplo com seu DNA. Mudando este último, pode aparecer uma
mudança na forma de uma planta. O meio ambiente também influencia o crescimento
e regeneração dos tecidos. No item 6 exponho minha teoria de como um modelo
arquetípico, não físico, pode regular esses processos.
É interessante notar que o pensar, o
sentir (tanto ter sensações quanto ter sentimentos) e o querer (por exemplo,
ter impulsos de vontade) são fenômenos interiores individuais
"ocultos" às outras pessoas ou a aparelhos. Por exemplo, é impossível
provar a outrem que se está tendo alguma dessas atividades interiores
específica (por exemplo, que se está pensando ou sentindo algo). Em particular,
a sensação e o sentimento são puramente subjetivos – cada um tem que ter o seu,
como veremos no item 5.2. No entanto, aquelas atividades interiores são
totalmente "reais" para qualquer pessoa – ninguém tem dúvida, por
exemplo, de que está pensando em uma certa coisa ou sentindo alegria, quando
isso ocorre. Isso mostra que um outro paradigma científico deveria ser adotado,
caso contrário jamais se compreenderá o ser humano como um todo. O atual
paradigma baseia-se em reprodutibilidade (que o ser humano não tem – o leitor
não será exatamente o mesmo depois de ler este artigo!), em experiências que
devem ser feitas publicamente (o que coloca nossas experiências mentais fora do
âmbito da ciência, quanto ao significado delas para nós próprios), fora o
lamentável reducionismo baconiano que, por sinal, é responsável em grande parte
pela destruição atual da natureza. Além disso, os conceitos devem ser expressos
matematicamente, para que a conceituação seja a mais objetiva possível
(qualquer pessoa pode seguir o raciocínio matemático) e se possa prever
numericamente o resultado das experiências, método que vem de Galileu, Newton e
Descartes. Lord Kelvin (o da escala de temperaturas) escreveu que o que não
pode ser expresso matematicamente não é ciência. Com isso, eliminam-se
totalmente os aspectos qualitativos, que fazem parte de nossa experiência comum.
Para examinar uma característica
fundamental do pensamento, vou dar aqui ao leitor dois exercícios mentais que
podem ser executados por qualquer pessoa.
Tome dois objetos aparentemente iguais,
como duas lâmpadas de mesma marca e modelo. Coloque-as simetricamente (por
exemplo, com os soquetes voltados um para o outro) sobre uma superfície
homogênea (por exemplo, uma folha de papel branco), preferivelmente sem
causarem sombras, de modo que fiquem em uma posição horizontal em relação à
mirada (isto é, com os eixos das lâmpadas formando uma linha mais ou menos
paralela com a linha que liga os olhos); tome o cuidado para que essa simetria
seja perfeita; por exemplo, se houver alguma inscrição nas lâmpadas, esconda-a
de seu campo de visão (pois em caso contrário talvez os dizeres de uma serão
imediatamente legíveis, e os da outra estarão invertidos). Observe-as
atentamente. A seguir, feche os olhos, e escolha uma delas para lembrar,
concentrando seu pensamento pelo menos por alguns instantes nessa representação
mental da lâmpada escolhida em sua posição particular, sem pensar em qualquer
outra imagem ou pensamento. Observe bem esse processo de decisão de qual lâmpada
lembrar. Se sentir que há uma tendência a lembrar a imagem de uma delas (por
exemplo, por ter visto recentemente uma lâmpada nessa posição), note que é
possível direcionar o pensamento para lembrar a outra. Em lugar de lâmpadas,
podem ser usadas duas canetas iguais, ou quaisquer outros pares de objetos
aparentemente idênticos.
No segundo exercício, assuma uma
posição sentada confortável, em um local com pouco ruído. Feche os olhos.
Produza uma calma interior, isto é, afaste os pensamentos e sentimentos que
eventualmente o perseguem, como preocupações, ansiedade etc. Esse estado de
calma interior é uma sensação muito particular, facilmente reconhecível. Em
seguida, imagine um mostrador, desses com número de senha para filas de
guichês, por exemplo onde os números aparecem em vermelho brilhante. Imagine
que o número 100 está representado nesse mostrador, e "fale"
interiormente "cem". Em seguida, imagine o número 99 lá mostrado, e
fale interiormente "noventa e nove", e assim sucessivamente para
números decrescentes. Observe seu pensamento, e veja até que número consegue
chegar sem que apareça outra imagem ou "som" interior em sua mente.
Note que, no meio da contagem regressiva, seu pensamento provavelmente será
desviado por causa de uma preocupação ou de uma associação mental involuntária.
Por exemplo chegando ao número de sua residência, talvez será imaginada a placa
de sua casa com o número nela gravado, bem como a frente da casa, ou talvez
algo de seu apartamento se ele tem aquele número, ou talvez o número recorde a
idade de um parente idoso e daí talvez seja lembrado o rosto do mesmo etc. Mas
o importante é observar que é possível executar o exercício para alguns
números, sem que o pensamento seja desviado da contagem. A propósito, esse
exercício serve de teste para a capacidade de concentração mental. Com treino,
isto é, repetindo-se o exercício, essa concentração normalmente aumenta, e
consegue-se atingir cada vez números menores, sem perder a concentração. A
razão de usar uma sequência decrescente deve-se ao fato de que uma crescente é
mais familiar, tendendo a ser imaginada interiormente de maneira mais
automática, dificultando o exercício.
Pois bem, qualquer pessoa que faça um
ou ambos os exercícios, poderá observar que nada, absolutamente nada a impele a
escolher uma determinada lâmpada ou parar (pelo menos inicialmente) de imaginar
o mostrador com seus números. Com isso, a pessoa terá feito a observação de que
seu pensamento é livre, tanto para escolher uma das lâmpadas como
para continuar a imaginar apenas o mostrador, pelo menos por alguns instantes.
Poder-se-ia pensar essa é uma sensação de
liberdade no pensamento. Mas não se trata de uma sensação subjetiva, e sim de
uma observação objetiva do próprio pensamento; note-se que fiz questão de
empregar várias vezes a palavra "observar" quando descrevi os
exercícios. É fundamental que se reconheça que existe uma objetividade no
pensamento. Por exemplo, uma pessoa mentalmente sadia tem absoluta certeza de
estar pensando. Aliás, de nossas atividades interiores somente o pensamento
pode ter absoluta clareza e certeza – segundo Rudolf Steiner (ver o seu
livro A Filosofia da Liberdade [STE]), isso é devido ao fato
de que, para pensar, não é necessária nenhuma outra atividade além do pensar
[p. 37]. Além disso, o pensar é a única atividade em que o objeto confunde-se
com a ação [p. 39]. De fato, pode-se pensar sobre o pensar – por exemplo,
quando se observa nos dois exercícios o que se passa com o pensamento. Com
todas as outras atividades humanas, isso não ocorre. Por exemplo, digerimos o
alimento ingerido, e não a digestão; andamos com as pernas, e não com o andar;
sentimos uma dor, ou alegria, devido a alguma causa, e não ao sentir; temos a
sensação do azedo do limão, e não a sensação de ter sensação.
A independência do pensamento em
relação a outras atividades, tornando-o um ponto de apoio, um fulcro para a
existência, não dependendo de mais nada, foi o que, segundo Steiner, levou
Descartes a formular o seu Cogito, ergo sum [STE, p. 37]. Além
disso, pensamento é a atividade interior mais controlável (ver o item 5.2).
A objetividade do pensamento é muito
clara na atividade matemática. Por exemplo, o conceito correto de
circunferência é o mesmo para todas as pessoas que o detêm. Mas ela também
existe nos processos cognitivos em geral. Por exemplo, convido o leitor a
responder agora ao seguinte: qual é o objeto que é percebido visualmente na
entrada da sala em que está? Deixarei algumas linhas em branco para que sua
resposta não seja influenciada pelo que segue.
Fazendo essa pergunta em inúmeras
palestras, a resposta foi, invariavelmente, "uma porta". Perguntando
a todos os presentes se alguém duvidava de estar percebendo visualmente uma
porta, ninguém se manifestava. Ora, isso mostra uma objetividade total nessa
experiência. Por que ocorre essa objetividade, se cada um tem uma percepção
visual diferente, com cores um pouco diferentes, com ângulo de visão diferente?
Isso ocorre pois em verdade não houve apenas uma percepção visual. A percepção
visual é de impulsos luminosos, apenas isso! A resposta estava errada. Não se
percebe visualmente uma "porta", simplesmente porque
"porta" é um conceito, e conceitos não são objetos físicos,
perceptíveis visualmente com nossos olhos. O que houve é que, a partir da
percepção visual dos impulsos luminosos, apareceu uma representação mental do
objeto visto, e aí o pensamento fez uma ponte dessa representação mental para o
conceito "porta" [STE, p. 71]. Note como formulei a pergunta: escolhi
cuidadosamente a expressão "perceber visualmente" e não
"ver". Tive que fazê-lo pois, inconscientemente, as pessoas
consideram "ver" como envolvendo o conceito, e eu queria isolar
claramente a percepção do conceito captado (ou "observado"!) pelo
nosso pensar. De fato, se não é possível associar percepções visuais a
conceitos, não vemos nada! Recomendo fortemente o estudo do
extraordinário livro sobre a história e a natureza da luz pelo físico quântico
Arthur Zajonc, onde ele mostra em detalhe esse extraordinário aspecto de nossos
processos visuais que, em geral, passa desapercebido [ZAJ, pp. 5, 183].
Como no caso dos conceitos matemáticos,
vou admitir a hipótese de que o conceito "porta", e todos os outros
conceitos, são entidades não físicas "gravadas" no mundo platônico
das ideias. Alguns cientistas admitem a existência de um tal mundo, como por
exemplo o famoso físico-matemático Roger Penrose [PEN, pp. 97, 428]; seu ponto
de partida são os entes matemáticos.
Nosso pensamento é capaz de atingir
esse mundo platônico – pois é da mesma natureza que ele –, tendo a capacidade
de observá-lo. Os cientistas padrões da cognição dirão que isso é bobagem, pois
o conceito "porta" está gravado em nosso cérebro. Só que eles não são
capazes de tornar essa especulação um fato científico – não conseguem nem
mostrar onde e como gravamos a representação do número 2! Imagine-se então o numeral
para 2, aquilo que há de comum entre todas as representações simbólicas desse
número, e que é um puro conceito, sem representação. Como é que um tal conceito
pode estar gravado, seja lá onde for? Obviamente, eles usarão um argumento
muito empregado pelos cientistas quando enfrentam algo desconhecido: dirão que
não conhecemos esses processos no cérebro hoje, mas amanhã eles serão
conhecidos... De qualquer modo, tenho pleno direito de formular uma hipótese
dessas, pois não contradiz nenhum fato científico conhecido hoje. Contradiz,
isso sim, os julgamentos dos seguidores do DCCC (ver o item 3 acima), isto é,
de quase todos os cientistas.
É fundamental colocarem-se em seu
devido lugar as experiências atuais com o cérebro: o que se conhece hoje de
processos mentais (certos pensamentos, lembranças, sentimentos, percepções
etc.) é que, dependendo do tipo de processo, certas áreas do cérebro são mais
ativadas que outras, o que é detectado por meio de imagens produzidas por
ressonância magnética, PET scanning etc. Mas a partir disso, o
máximo que se deveria afirmar é que essas áreas participam dos
processos mentais; jamais se deveria afirmar, a não ser como especulação, que
esses processos são originados nessas áreas. Um exemplo típico
de afirmação indevida nessa linha é a especulação que se faz sobre a origem de
processos mentais que desaparecem ou mudam quando existem lesões no cérebro.
Esse é o caso de Antônio Damásio, cujo livro Descartes Error [DAM]
parte do famoso caso do rapaz Phineas Gage, que foi atingido na cabeça durante
a construção de uma ferrovia nos EUA em 1848, teve parte do cérebro arrancado e
com isso mudou de comportamento social. Damásio logo conclui que esse
comportamento era gerado pela parte lesionada, e daí constrói toda sua teoria
típica para o materialismo de hoje em dia, de que a mente é o cérebro físico (e
daí sua afirmação de que Descartes estava errado, pois este considerava mente e
cérebro como entidades separadas), em lugar de dizer o correto, isto é, que a
parte lesionada estava envolvida no comportamento social e que
o cérebro está de alguma maneira simplesmente participando do mesmo. Se uma
área do cérebro é lesada, perdem-se certas capacidades mentais. Pode-se supor
que, na verdade, o que se perde é a consciência dos processos correspondentes,
e eles não podem mais ser controlados. Isso nos leva ao seguinte.
Como se pode entender que o cérebro
seja necessário, se um processo mental for originalmente não físico? Steiner dá
uma resposta interessante: o cérebro físico, ou o sistema neurológico, são
necessários pois funcionam como espelhos, refletindo os processos mentais para
a consciência. Se uma pessoa olha-se em um espelho, ela torna-se consciente de
seu rosto como está naquele instante, e é impossível ela ter essa consciência sem
algo que espelhe seu rosto. Por exemplo, olhando no espelho, ela pode fazer uma
careta e acompanhar e controlar esse processo. Quebrando-se o espelho, ela não
tem mais consciência instantânea de seu rosto e não tem ideia se está realmente
fazendo a careta com o efeito desejado – mas não deixa de ter rosto! Isto é,
perdeu a consciência da forma de seu rosto naquele instante. Hoje, em lugar de
um espelho ela poderia filmar seu rosto com uma web cam e
projetar sua imagem em seu computador, mas aí o sistema comportar-se-ia como um
espelho; se o sistema parar de funcionar, acontecerá o mesmo que no caso do
espelho quebrado. Assim, quando pensamos, o cérebro permite que tenhamos
consciência do que estamos pensando; com isso podemos controlar nosso
pensamento. Note-se que, devido a um conhecimento intuitivo antiquíssimo desse
processo, emprega-se a palavra "refletir" como sinônimo de
"pensar"! Isso pode mostrar que havia uma noção do que é o pensamento
como foi indicado aqui.
Assim, o nosso corpo físico é essencial
nos processos mentais usuais, e não deve de modo algum ser desprezado.
Resta o problema de como um processo
não físico pode influenciar um processo físico. Tratarei dessa questão no item
6.
Voltemos à questão da observação
interior da possibilidade de se determinar livremente o próximo pensamento –
isto é, sem ser forçado por impulsos exteriores, por sentimentos etc. Essa
constatação mostra que há processos interiores que não podem ser explicados
materialmente. As características físicas impõem certo comportamento para a
matéria e para a energia: destas não pode advir liberdade, isto é,
autodeterminação consciente. De fato, um velho raciocínio a respeito disso é o
seguinte: um átomo não pode ser livre; portanto, um grupo de átomos formando
uma molécula também não pode ser livre; um grupo de moléculas, formando uma
célula, idem; um órgão, que é um grupo de células, ibidem; portanto um corpo,
que é um conjunto de órgãos, também não pode ser livre. Então, de onde surge a
liberdade? (Obviamente, dirijo-me aos que conseguem admiti-la, eventualmente
baseados nos exercícios dados no início deste item.) Note-se que total
liberdade só podemos ter em nosso pensamento: não temos liberdade de
mover nossos braços de qualquer maneira, em todas as direções, mas temos
liberdade para pensar no que decidamos pensar. Nossos braços dependem de nossa
constituição física, nossos pensamentos, não (somente a consciência do que
pensamos, e portanto o controle dos pensamentos dependem de nosso cérebro
físico, como exposto acima). Também não temos liberdade em nossas percepções,
que são determinadas pelo objeto sendo percebido e pelos nossos órgãos
sensoriais. Também não temos liberdade de ter algum sentimento. Por exemplo, ou
gostamos ou não gostamos de algo; não podemos decidir começar a gostar de algo
que não gostamos (com o tempo, esse sentimento pode mudar, mas isso não pode
ser feito imediatamente). Nossa vontade também não é livre: por exemplo, se
estamos com fome, sentimos o impulso de comer; podemos refrear-nos e não comer
nada, mas o impulso continuará a existir – simplesmente não conseguimos
eliminá-lo (podemos eventualmente esquecê-lo, se temporariamente nos
distraírmos com algo diferente de comida).
A liberdade do pensamento mostra que há
algo não físico ligado a ele; nesse sentido, Descartes estava, de certa
maneira, errado. O correto seria ele ter formulado cogito, ergo non sum,
isto é, justamente por eu poder pensar, posso concluir que algo de não físico,
não existente fisicamente, passa-se dentro de mim (esse "dentro",
tomado em um sentido amplo, não só físico do corpo).
No segundo exercício, mencionei a
criação de uma calma interior. A possibilidade de se conseguir isso também uma
indicação de que existem processos não físicos no ser humano. Se dependêssemos
totalmente de nossa matéria, as preocupações e ansiedades, tão comuns e
intensas hoje em dia, nela "gravadas", não permitiriam que pudéssemos
criar um estado de calma interior.
5.2 Sentimentos
Tanto animais como seres humanos têm sensações e sentimentos.
Infelizmente, usa-se em português o mesmo verbo, sentir, para ambos; em inglês
há to sense e to feel; em alemão a distinção é
ainda mais clara, empfinden e fühlen. Vamos deixar
clara a diferença com exemplos: chupando-se um limão tem-se as sensações de
acidez e do sabor do limão. Após ter-se essas sensações, experimentamos
um sentimento de prazer ou de desprazer (há pessoas que adoram
chupar limão!). Prazer e desprazer são devidos a sentimentos ainda mais básicos:
atração ou repulsa.
Examinando esses dois processos, pode-se observar que sensações e
sentimentos são absolutamente individuais e subjetivos. A sensação que eu sinto
ao chupar um certo limão só eu posso sentir. Do mesmo modo, o prazer ou
desprazer que eu sinto chupando um limão só eu posso sentir. Posso descrever
minhas sensações ou sentimentos para outra pessoa e até demonstrá-las por
gestos e expressões faciais, mas essa última não sentirá minhas sensações e
sentimentos. Por exemplo, posso descrever que, em certa situação, estou alegre,
e a outra pessoa pode, por empatia, alegrar-se comigo. No entanto, a alegria
que sinto é única, pois a alegria que a outra pessoa sentirá ao ver-me alegre é
sua própria alegria, não a minha.
Contrapondo ao pensamento, que já examinamos, pode-se ver que há uma
distinção fundamental entre este e as sensações e sentimentos, além da
capacidade de controlar o primeiro (cf. item 5.1): o pensamento pode ser
universal, quando se o foca em um conceito universal, como por exemplo um
conceito matemático – como eu já disse no item anterior, o conceito correto de
circunferência é o mesmo para todas as pessoas. Assim, o pensamento pode ter um
caráter de objetividade. Por outro lado, sensações e sentimentos são
absolutamente subjetivos e individuais. Com o pensamento, eu me ligo ao
universo, passo a pertencer a ele; ao sentir, tenho uma experiência de minha
própria individualidade. É devido às sensações e aos sentimentos que o mundo
não nos é indiferente; ele nos seria indiferente se fôssemos seres puramente
cognitivos, como notou Steiner [STE, p. 80].
Aqui vem um ponto fundamental: não há individualidade na matéria ou na
energia, no sentido de elas terem sentimentos. É preciso que o ser vivo tenha
um sistema nervoso para poder sentir. Mas o sistema nervoso é matéria. É seu
funcionamento particular – em minha hipótese de trabalho, como consequência de
uma ação não física – espelhando sensações e sentimentos para a consciência, do
mesmo modo que descrevi para o pensamento, que nos faz ter consciência do nosso
sentir.
O argumento da não individualidade da matéria pode tornar-se mais claro
quando se consideram as máquinas. Elas são universais, e nunca individuais,
pois máquinas de mesma marca e modelo têm exatamente o mesmo projeto, e
eventualmente foram construídas precisamente da mesma maneira. (Recordemos que
os seres humanos, e também os animais e as plantas, não foram projetados e
construídos.) Duas geladeiras da mesma marca, modelo e cor, com os seus
termostatos colocados na mesma posição, digamos, 2, atingem depois de algum
tempo temperaturas estáveis com pequena diferença. Mas isso não é suficiente
para associar individualidade a elas. Em meu artigo sobre Inteligência
Artificial [SET] usei esse argumento para mostrar que máquinas jamais terão
sentimentos (lembre-se do que escrevi acima: sentimentos humanos são
individuais e subjetivos). Em particular, qualquer máquina digital, como um
computador, é uma máquina universal pois, dada suficiente capacidade de
armazenamento de dados e tempo, qualquer uma pode simular outra, como Alan
Turing demonstrou em 1935, ao definir justamente o que é uma "máquina
universal" (ver, por exemplo, http://en.wikipedia.org/wiki/Turing_machine).
Se seguirmos o processo de se ter uma sensação, pode-se ter outro
vislumbre de como há algo não físico envolvido no sentir. Tomemos um processo
visual, como ver uma superfície vermelha. Os impulsos luminosos atingem nossas
retinas, por um processo relativamente mecânico. A retina transforma os
impulsos luminosos em impulsos elétricos, que passam pelo nervo óptico.
Atenção: não se pense que pelos nervos ópticos passa, sob forma de impulsos
elétricos, uma diminuta imagem (invertida...) do objeto visto: verificou-se que
o que passa é um sinal semelhante ao ruído. Além disso, os feixes de nervos que
saem das metades mediais (isto é, mais próximas da linha mediana do rosto) de
cada olho cruzam-se para, junto com os feixes das metades laterais de cada
olho, constituírem o trato óptico de cada lado. Assim, o trato óptico do lado
direito é constituído por fibras laterais provenientes do olho direito e fibras
mediais provenientes do olho esquerdo. Os sinais vindos por esses feixes vão
para 5 diferentes áreas do córtex cerebral, dedicadas primordialmente à
percepção visual, movimentos no espaço visual, e memória óptica que ativam
diferentes áreas no hemisfério direito, bem como percepção de forma e de cor no
hemisfério esquerdo [ROH, p. 17]. Aí temos mais um problema: como é que essas 5
áreas diferentes provocam uma representação mental única do objeto percebido
visualmente? Como e onde precisamente é formada essa representação, como ela é
virada de cabeça para cima? Não se sabe. Além disso, como já vimos no item 5.1,
é um fato que, sem que se possa associar algo visto com um conceito conhecido,
não se vê esse algo. Se os conceitos não são físicos, há algum processo não
físico envolvido mesmo numa percepção sensorial! Mas continuemos com o processo
de ver uma superfície vermelha. Fazemos uma representação mental dessa
superfície, e em seguida temos a sensação interior do vermelho. Como é
produzida essa sensação? Um grande mistério da ciência cognitiva! Pense-se
profundamente sobre essa simples sensação: como qualquer processo material no
cérebro ou seja onde for, pode transformar-se em uma reação interior
correspondente à sensação? No item 6 do artigo citado sobre Inteligência
Artificial [SET] coloquei o seguinte trecho de um livro do cientista J.
Haugeland (ver cópia do original no meu artigo):
"É surpreendentemente difícil encaixar essas questões [os vários
tipos de sentimentos] na Inteligência Artificial. Mesma a sensação, que deveria
ser de alguma maneira o caso mais simples, é profundamente surpreendente. Não
há dúvida de que máquinas podem "perceber" [sense] o seu
ambiente, se isso significa descriminação – dar respostas simbólicas em
circunstâncias diferentes. Olhos elétricos, termômetros digitais, sensores de
toque etc. são todos comumente usados como órgãos de entrada em tudo, desde
brinquedos eletrônicos a robôs industriais. Mas é difícil imaginar que esses
sistemas de fato sentem alguma coisa quando eles reagem a estímulos exteriores.
Apesar de o problema ser geral, a intuição é a mais clara no caso de dor:
muitos sistemas complexos podem detectar defeitos internos ou mal funcionamento
e até mesmo tomar medidas corretivas; mas será que a eles dói? Parece incrível;
no entanto, o que exatamente está faltando? Quanto mais eu penso nessa questão,
menos eu fico convencido de que eu chego a saber o que isso significa (o que
não quer dizer que eu penso que não tenha significado)." [HAU, p. 235.]
É claro que Haugeland mostra uma profunda perplexidade quando tenta
compreender o que significa ter sensações. De fato, como eu disse
anteriormente, sempre que se procura seguir uma cadeia de causas e efeitos nos
seres vivos, até as últimas consequências, sempre se chega em algo desconhecido
– particularmente em seres humanos, e especialmente nas sensações e nos
sentimentos.
Essa individualidade do sentir, especialmente nos seres humanos, e o
fato de a matéria não ter individualidade, é mais uma indicação de que há algo
mais do que matéria no ser humano.
O sentimento que se poderia denominar de "mais elevado" no ser
humano é o amor altruísta, isto é, um sentimento consciente de amor por algo ou
alguém sem nenhum aspecto egoísta, isto é, sem qualquer vantagem pessoal ou
mesmo um prazer envolvido no relacionamento e nos atos daí resultantes. Ele só
pode ser devido a um ato consciente, executado em liberdade; se tiver qualquer
imposição sentimental de prazer, ou a ação for instintiva, um ato de amor não é
realmente altruísta. Um contra-exemplo é o amor paternal, que está ligado com a
hereditariedade e o sentimento devido à convivência. Darwin já especulou que o
amor altruísta apareceu na humanidade por razões evolutivas: as pessoas
altruístas eram mais bem aceitas pelas comunidades e portanto tinham mais
chance de sobreviver. Richard Dawkins, em seu livro O Gene Egoísta [DAW]
vai mais longe: diz que os genes são egoístas, fazendo tudo para se
perpetuarem. Pasme-se: em ambos os casos, o altruísmo é devido a um egoísmo.
Que não se venha com o argumento de que o amor altruísta é devido a um
instinto, como já citei – eventualmente desenvolvido durante a evolução. Em
primeiro lugar, é preciso mostrar como um instinto está "gravado" em
nossa matéria e como ele atua no organismo. Em segundo lugar já vimos, segundo
minha caracterização de amor altruísta, que se ele é devido a um instinto,
então não é altruísta. Animais não podem exercer altruísmo, pois falta-lhes o
pensar, a autoconsciência e a liberdade.
Já vimos que o pensamento pode ser livre, isto é, não ser devido a
nenhuma imposição interna ou externa, como seria o caso das influências
genéticas, instintos ou sentimentos. A partir do pensamento, pode-se livremente
imaginar uma ação altruísta e executá-la. Portanto, para mim o amor altruísta é
mais uma evidência da existência de algo não físico no ser humano. Reconheço
que estou supondo a existência de amor altruísta. Um materialista coerente não
pode admitir sua existência. Da matéria não pode advir altruísmo.
A questão da volição é ainda mais complexa que a do sentir. Por exemplo,
estou vendo um livro em minha frente. Resolvo, por um impulso de vontade,
pegá-lo. Para isso, movo minha mão. Mas o que fez meu braço e minha mão
executarem o movimento que fizeram? Alguns músculos foram contraídos, outros
expandidos ou relaxados. Mas o que fez esses músculos mudarem de estado? Quem
sabe foram alguns impulsos elétricos que os atingiram, mas, como mencionei no
item 2, se se segue para trás uma cadeia de causas e efeitos em um ser vivo,
sempre se chega a um ponto onde não é possível continuar.
Rudolf Steiner deu uma interessante imagem associando estados de
consciência ao pensar, ao sentir e ao querer. Ele diz que o pensar corresponde
ao nosso estado de vigília, os sentimentos correspondem a um estado de sonho, e
a vontade a um estado de sono profundo. De fato, no pensar podemos ter clareza
e total consciência, como quando estamos acordados, e podemos ter absoluto
controle sobre ele (pelo menos por alguns instantes – e quando perdemos esse
controle podemos tornar-nos conscientes do fato); já os sentimentos não são
claros, pelo contrário, são meio nebulosos; indicam-nos algo mas não podemos
confiar muito neles. Por exemplo, podemos detestar algum alimento porém,
reconhecendo que muitas pessoas gostam dele, concluímos que nossa opinião de
que ele é desagradável por natureza ou não é saudável deve estar errada.
Assim, os sentimentos típicos de simpatia e antipatia não deveriam ser uma
base para nossa cognição, pois dizem muito mais algo sobre nós mesmos – a
individualidade ligada aos sentimentos – do que sobre o objeto ou pessoa
observados. Isso significa que, no caso de antipatizarmos com alguém, não
deveríamos concluir algo sobre sua personalidade, pois trata-se de um
sentimento que pode mudar radicalmente com um conhecimento mais profundo
daquela pessoa. Já a vontade vem do profundo de nosso inconsciente, como
apontei no parágrafo anterior; no sono profundo, estamos totalmente
inconscientes. Pode-se supor que algo que nos torna conscientes "desliga-se"
de nossos processos vitais durante o sono profundo.
É interessante notar que temos uma certa percepção de que pensamos
"com a cabeça". Já a região dos sentimentos é difusa – às vezes
percebemos que eles têm algo a ver com nosso coração, por exemplo em uma
frustração muito grande, como as amorosas, ou, como se diz, algo nos "deu
um nó na garganta". Mas não temos nenhuma consciência da sede de nossa
vontade (a sensação de fome não é a mesma que o impulso para comer algo).
A memória não parece ser física, apesar de se falar tanto que ela o é,
baseado na metáfora do computador digital. Em primeiro lugar, aparentemente a
memória parece ser infinita: todas nossas vivências ficam gravadas, sendo a
quase totalidade no inconsciente ou no subconsciente. Aquilo que é esquecido em
geral pode ser lembrado em situações especiais, como por exemplo em estados
hipnóticos, isto é, aparentemente "guardamos" de alguma maneira todas
as nossas vivências, exteriores e interiores. Esse fato foi usado pelo famoso
matemático Von Neumann para calcular nossa "capacidade de
armazenamento", multiplicando a aparente capacidade de cada "receptor
padrão" (standard receptor – ele estimou em 14 impressões de
bits por segundo), pelo número estimado de células nervosas no corpo humano (1010),
e uma vida de 60 (!) anos (2x109 segundos), dando um total de
2.8x1020 bits [NEU]. Mas não temos a vivência de que nossa
memória é limitada, e muito menos de ser discreta, como veremos no próximo
parágrafo.
Em segundo lugar, se a memória fosse física, ela deveria ser perfeita.
Ora, qualquer pessoa pode constatar, olhando algum objeto e depois tentando
lembrar de sua imagem fechando os olhos, que a percepção visual é muitíssimo
mais detalhada do que a lembrança. É interessante notar que, se o objeto for
geométrico, relativamente simples (como um cubo, por exemplo) e homogêneo em
sua cor, será possível lembrar-se dele com toda nitidez, pois na verdade o que
se fará é recompô-lo mentalmente: será na verdade uma construção mental
geométrica. Se nossa memória fosse um sistema puramente físico, a lembrança de
nossas vivências visuais deveria ser tão clara como a visão direta das mesmas.
Para explicar por que deveria ser assim, vou usar um raciocínio tipicamente
evolucionista: se nossa memória fosse um sistema puramente físico, a
evolução teria dado certamente preferência às pessoas que teriam a vantagem de
lembrar com mais precisão aquilo que viam, até que, com o decorrer das
gerações, a memória das percepções sensoriais se tornasse exata – como nos
computadores! Assim, o fato de a memória não ser perfeita é uma indicação de
que ou o pensamento evolucionista é falho, ou há mais do que processos
puramente físicos nela envolvidos. O mesmo raciocínio poderia ser usado para a
duração da memória: não devia haver razões para se esquecer. Mas aqui
poder-se-ia colocar uma objeção: se a memória for física, deve ser finita, e
não seria possível "armazenar" cada vivência que se tem, de modo que
algumas lembranças devem ser "esquecidas". Mas não temos a
experiência de que nossa memória é finita, e aquilo que é esquecido pode ser
lembrado em situações especiais, como já vimos.
Em terceiro lugar, não temos a percepção de que nossos processos
interiores são discretos, ou digitais, como se passa com todos os computadores.
Se estes não fossem sistemas discretos, não poderia haver o determinismo que
lhes dá tanta potência – imagine-se o desastre que seria se um computador,
estando no mesmo estado da máquina, para os mesmos dados de entrada e um mesmo
programa, produzisse resultados diferentes para diferentes processamentos! Por
outro lado, se a gravação fosse analógica, como nas fitas de video-cassette
comuns, a metáfora computacional não poderia ser usada. Não teríamos acesso
praticamente instantâneo (para a nossa percepção de tempo) a qualquer
lembrança. Sem uma estrutura discreta de armazenamento, uma busca linear por
algo "armazenado" teria que ser executada, pelo menos parcialmente,
como por exemplo ao se saber a trilha de um disco mas tendo que varrê-lo
sequencialmente para achar o que é procurado, o que levaria bastante tempo face
à enorme quantidade de dados que estariam guardados.
Finalmente, em quarto lugar, o fato de a memória ter várias camadas,
como as de curta, média e longa duração, bem como o fato de se esquecer algo,
mostra que não se está em um sistema físico conhecido. Por exemplo, um
computador não "esquece". Ou algo está gravado, ou não está gravado.
O acesso ao dado gravado pode ser bloqueado, mas esse bloqueio pode ser mudado
executando-se um programa apropriado. Quando esquecemos de algo, não há regra
para lembrarmos dele: muitas vezes podemos fazer um esforço enorme, e não
conseguimos recordar o que precisamos. De repente, sem querer, a lembrança nos
vem à consciência. Uma outra característica é a de pessoas de muita idade
lembrarem nitidamente de fatos da infância, dos quais não se recordavam antes,
mas serem muitas vezes incapazes de lembrar de fatos corriqueiros acontecidos
há pouco.
Todas essas características parecem-me evidências de que a memória não é
física. Novamente, isso não contradiz fatos científicos conhecidos; como já foi
dito, a ciência simplesmente nem sabe como e onde estaria "gravado"
algo tão simples como o número 2. A manifestação da memória obviamente depende
do cérebro físico, de modo que se ele não é mais sadio, a memória pode sofrer.
Mas dessa dependência só se deveria concluir cientificamente que o
cérebro toma parte do processo de recordar, isto é, de tornar
consciente o que estava "guardado", e não que ele seja a sede física
onde de alguma maneira as lembranças estão gravadas. Lembremos do que eu disse
a respeito de ter consciência de pensamentos e sentimentos: analogamente, o
cérebro físico pode ser necessário para refletir nossas lembranças para a
consciência.
Essa é uma questão milenar. Parece óbvio que somente uma força física
pode provocar uma alteração física. Aqui vai exposta a minha teoria que resolve
essa questão. Para isso, vou usar três raciocínios aplicados, um, a nossos
processos nervosos, e os outros dois às formas dos seres vivos. Ambos
baseiam-se na noção de transição não determinística, inspirada em autômatos
formais, como a Máquina de Turing.
Tomemos o caso de um neurônio. Pelo conhecimento atual, sabe-se que, se
determinados impulsos elétricos chegarem a ele por meio das suas sinapses de
entrada (isto é, conectores ligados a outros neurônios), esse neurônio pode ou
não disparar, isto é, emitir um sinal elétrico a outros neurônios por meio de suas
sinapses de saída. Aparentemente, o disparo é casual para os mesmos impulsos de
entrada. Vamos associar dois estados diferentes a esse neurônio: um, A, em que
ele está antes de receber os impulsos de entrada, e outro diferente, B, logo
depois de recebê-los e disparar, emitindo um sinal para os neurônios aos quais
estão ligadas suas sinapses de saída. Se esse neurônio não disparar com uma
certa entrada, então ele permanece em A depois de receber os impulsos de
entrada. Se ele disparar, então muda para o estado B. Temos, então, duas
transições distintas com os mesmos impulsos de entrada, de A para A (quando não
houve disparo) ou de A para B (quando houve disparo). Essas duas transições
são, portanto, aparentemente não deterministas – não há nada
que determina que deve ser tomada uma ou outra. Quem sabe, na decisão de qual
transição tomar de um conjunto de transições não deterministas o elemento não
físico pode atuar sobre o físico, pois essa decisão não requer
energia. As transições em si podem requerer energia, mas não a escolha de qual
deve ser tomada.
O segundo exemplo refere-se às células dos seres vivos. Dada uma célula
em um certo estado A, três transições podem ocorrer nos próximos instantes: 1)
Ela permanece no mesmo estado de antes, isto é, houve uma transição de A para
A. 2) Ela começa a subdividir-se em duas células (meiose ou mitose), indo
portanto para um estado de subdivisão que denominarei de B. 3) Ela começa a
morrer (apoptose), passando para um estado que denominarei de C. Pelo
conhecimento atual, dada uma célula não se pode prever se a transição será de A
para A, para B ou para C. Novamente, podemos supor que aqui há um não
determinismo. E, novamente, a escolha de qual transição deve
ser feita não requer energia.
Um terceiro exemplo refere-se ao DNA. A partir de um gene, vários
aminoácidos diferentes podem ser formados. A partir de cada aminoácido, apenas
uma proteína é formada. Talvez haja um não determinismo físico no processo de
formação dos possíveis aminoácidos a partir de um certo gene. Nesse caso, o
modelo não físico do ser vivo pode então atuar escolhendo qual aminoácido é
formado em cada situação.
Como nos três exemplos nenhuma energia é requerida para a decisão de
qual transição deve ser tomada, é aí que a entidade não física ou o modelo
ligado ao ser vivo pode interferir e influenciar a transmissão física dos
sinais do cérebro ou o desenvolvimentos dos tecidos onde as células estão
inseridas.
No item 4.3 descrevi as aparências de alguns seres vivos, tratando de
formas e de simetrias. Uma possível explicação para elas é que os genes regulam
o crescimento, isto é, que a taxa de crescimento é controlada pelos genes. No
caso das simetrias, essa taxa seria aproximadamente a mesma para as partes
correspondentes. Mas nos seres vivos não existem as forças físicas
isoladas que atuam, por exemplo, nos cristais, regulando a forma geométrica de
crescimento – a propósito, os cristais crescem por deposição salina, isto é, um
processo exterior, e os seres vivos por um processo interior. O máximo que o
DNA poderia fazer é provocar um crescimento independente de cada parte do ser
vivo. No entanto, sem um permanente controle da forma total, a (aparente)
aleatoriedade inerente aos seres vivos, e também as diferentes influências do
meio ambiente (por exemplo, no caso de plantas, diferenças de iluminação,
direção dos ventos, umidade, a presença de outras plantas, influência de
animais como insetos etc.), não permitiriam a manutenção tão precisa da forma
ou do grau de simetria que podem ser observados na natureza.
No item 4.3 mencionei também a forma simétrica das orelhas de cada
indivíduo. Mas o DNA na orelha é o mesmo que o do dedo, no entanto um dá
orelha e outro dá dedo. Um biólogo diria que isso depende do ambiente da orelha
e do dedo, mas ele não é capaz de explicar o processo em todo seu detalhe. Além
disso, no embrião humano, até a segunda semana não há diferenciação alguma e o
ambiente é o mesmo para todas as células. Como principia e é controlada a
diferenciação? A propósito, o desenvolvimento do embrião humano é uma maravilha
de tal grau que parece um milagre – e não deixa de ser, do ponto de vista
físico! Examine-se, por exemplo, como se forma o coração em seus vários
estágios, com incríveis torções, dobramentos e desdobramentos, para se tender a
acreditar em milagres... [ROH, p. 186.] Esse é um grande mistério científico,
que pode nos levar à hipótese de que existe um modelo não físico regulando todo
esse processo de crescimento. Porém, atenção, como já eu disse no item 4.3, não
se deve transpor para o plano não físico modelos baseados em nossas
experiências sensoriais. Por exemplo, em espécies diferentes de plantas os
brotos de flores têm aproximadamente a mesma forma, adquirindo as formas
distintas no desenvolvimento subsequente. Além disso, numa planta muitas vezes
as folhas começam com formas arredondadas e somente depois assumem as formas
características de sua espécie, com bordas serrilhadas, formas redondas ou
alongadas etc. Embriões de várias espécies de animais parecem todos iguais, em
seus estágios iniciais – e semelhantes ao embrião humano (o que poderia levar à
hipótese de que o modelo humano não físico é o ponto de partida para as formas
dos animais). Conta-se uma história de que o famoso Haeckel esqueceu de rotular
recipientes contendo pequenos embriões de diferentes animais e depois não
conseguia especificar a qual espécie cada um pertencia.
Voltando ao DNA, é interessante notar que um mesmo gene no DNA pode dar
origem a diversas proteínas diferentes. Talvez aí haja também um não
determinismo, onde o modelo não físico pode influenciar o desenvolvimento e a
regeneração do organismo; afinal são as proteínas que constituem os blocos
básicos de construção dos organismos vivos, e não o DNA. Além disso, associa-se
este último a um programa. Mas todo o programa deve ser interpretado – a rigor,
um programa de computador, no código interno mais básico, denominado de
"linguagem de máquina", não é executado pela máquina, como se costuma
dizer, e sim interpretado pelos circuitos lógicos. Onde está o interpretador de
DNAs? A esse respeito, veja-se meu artigo em meu site "Desmistificação da onda do DNA".
Uma das hipóteses fundamentais do espiritualismo deveria ser a de que
existe uma essência não física individual em cada ser humano, da mesma natureza
que as essências de outros seres humanos, mas distinta delas. É ela que dá a
individualidade que denomino de "superior", e que transcende à
individualidade resultante da hereditariedade e da influência do meio ambiente;
a ciência materialista pára por aí. Essa essência pode ser a maior responsável pela
imprevisibilidade de cada ser humano.
Outras teorias têm sido formuladas para explicar as formas e o
comportamento de seres vivos. Por exemplo, Rupert Sheldrake introduziu seu
"campo morfológico", que supostamente permeia toda matéria no
universo [SHE]. Porém, para ele trata-se de um campo físico. O
físico Amit Goswami considera que a não localidade quântica, a propriedade de
uma partícula influenciar instantaneamente uma outra, "acoplada" (entangled)
à primeira, independentemente da distância que as separa (ver o item 4.2
acima), pode explicar muitas características de seres vivos [GOS]. Mas esse é
um fenômeno que ocorre em partículas sujeitas a condições especiais, como no
caso de duas partículas acopladas que foram geradas a partir de uma única (tal
como um fóton dividido em dois por um espelho parcialmente refletor), o que não
ocorre nos seres vivos. De toda maneira, o fenômeno é puramente físico.
Uma vez assisti uma palestra do astronauta Edgard Mitchell, onde ele tentou
explicar certos fenômenos que ocorrem nos seres vivos usando hologramas
quânticos. Novamente, uma explicação física. Todas essas explicações são de
fato materialistas: elas não reconhecem a existência de algo realmente não
físico, como eu o faço.
Suponhamos que, por um verdadeiro milagre, muitos cientistas decidissem
abandonar o DCCC e deixassem de ser preconceituosos em relação à existência de
fenômenos não físicos nos seres vivos e no universo. Com isso, o paradigma
científico atual deveria mudar, por meio de uma expansão do atual. Insisto em
que não se trata de mudar a ciência, mas sim expandi-la. É fundamental que os
cientistas percebam que, com isso, não precisariam abdicar dos princípios
fundamentais da atividade científica, tais como observação objetiva e
transmissão de ideias e resultados exclusivamente por meio de conceitos claros.
É claro que o método científico atual foi a causa do desenvolvimento da
fantástica tecnologia que temos hoje em dia. No entanto, está mais do que na
hora de se questionar se seus males não ultrapassam os seus bens – vejam-se as
questões bem atuais do aquecimento global, da poluição generalizada,
armamentos, uso indevido ou exagerado da Internet etc. Experiências
particulares levam a uma visão particular dos efeitos das máquinas, e dos
compostos químicos inventados e em uso. Parece-me que foi adotado um princípio
fundamental: a natureza não é suficientemente boa e deve ser melhorada. Um
exemplo é a modificação genética de plantas e animais. Tenho a impressão de que
isso é devido a uma falta de respeito para com a natureza – uma consequência
típica do DCCC. Além disso, é um fato a tecnologia (no sentido usado em
inglês) estar hoje em dia totalmente voltada para a satisfação de ambições e
egoísmos, que são antissociais por natureza .
Vou colocar brevemente algumas sugestões, somente para ilustrar o que
poderia ser feito para estender a ciência corrente. Infelizmente não posso me
alongar pois essa questão por si só daria um artigo bem grande.
Um dos primeiros passos na mudança do paradigma científico seria passar
a usar um método dedutivo, do geral para o particular, e não indutivo,
reducionista, baconiano, do particular para o geral.
Um exemplo clássico do método reducionista é a teoria das cores de
Newton. Ele próprio confessa que, para concluir que a luz branca é composta de
todas as cores, partiu de uma experiência extremamente particular. Ele usou um
feixe de luz de determinada espessura, em suas próprias palavras "... at a
round hole, about one third Part of an Inch broad made in the Shut of a Window.
(sic)" [NEW, p. 26 (Prop. II, Theor. II, Exper. 3)]. Portanto, não era
um foramen exiguum, um furo diminuto, como foi depois erroneamente
denominado e, mesmo se o fosse, continuaria sendo um caso particular. Goethe,
em sua teoria das cores (Farbenlehre é melhor traduzida assim como
o fiz, e não "doutrina das cores", pois
"doutrina" tem a conotação de "pregação"), aponta para esse
defeito metodológico partindo, em suas próprias e rigorosíssimas experiências,
do caso geral de feixes de qualquer tamanho, mostrando como os fenômenos
causado por feixes de diâmetros particulares podem ser explicados em termos da
situação geral [GOE, Vol. 3, p. 48: Der Newtonsche Optik – Erstes
Buch, Erster Teil (A Óptica de Newton – vol. 1, parte 1), Props. 86-93].
André Bjerke mostra uma generalização da óptica de Newton, demonstrando que
cada um de suas proposições e experimentos podem também ser feitos com
"feixes de escuro", obtendo-se as cores complementares no sentido de
Goethe [BJE]. A propósito, a teoria das cores complementares de Goethe é usada
no software básico dos computadores: por exemplo, em um editor
de texto, se parte de um texto tem letras de uma certa cor, selecionando essa
parte com o cursor do mouse faz com que as letras sejam
exibidas tela na cor complementar. Além disso, as cores básicas rgb(vermelho,
verde e azul escuro) empregadas nas telas de vídeo são complementares às
cores cmy (ciano, magenta e amarelo) usadas nas impressoras
coloridas (pois tem-se no primeiro caso um feixe claro com fundo escuro e no segundo
o complementar de um feixe de escuro sobre papel claro).
O método reducionista não leva, em geral, a conhecimentos globais. É
óbvio que uma célula retirada de um organismo não é mais aquela: só no
organismo ela tem todas suas funções e mostra todos seus comportamentos. Goethe
já considerava o organismo de um ser vivo como manifestação de um todo. Isso
significa que jamais se saberá o que é um organismo vivo se se continuar
partindo, por exemplo, de suas células ou de seus genes. A esse respeito, veja-se,
em meu site, meu artigo "Desmistificação da onda do DNA",
já citado.
Uma segunda mudança seria a da volta à ciência qualitativa. Um exemplo
dessa ciência era a antiga Sistemática (identificação e classificação) das
plantas, com seus magníficos desenhos. É preciso reconhecer que a modelagem
matemática quantitativa leva a um domínio sobre a natureza, mas jamais um
conhecimento profundo sobre ela. Um exemplo trivial é a fórmula da atração
gravitacional de Newton: ela não explica absolutamente nada sobre o que é
gravitação (ainda uma grande questão nos dias de hoje). As fórmulas matemáticas
da Física exprimem os resultados mensuráveis das experiências, e não a
realidade em si.
Uma terceira seria reconhecer que, na procura de causas e efeitos,
algumas causas podem ser não físicas. Por exemplo, a pesquisa corrente em
cognição tenta explicar nossos pensar, sentir e querer, bem como nossas
percepções, como originando-se em neurônios. Se ela fizesse a hipótese de que a
atividade neuronal pode ser a consequência deles, expandiria muito seu campo de
pesquisa.
Uma quarta seria a de pesquisar as manifestações dos elementos não
físicos, especialmente nos seres vivos. Conjeturo que, com o paradigma atual,
jamais se conseguirá explicar desde a forma das plantas até o sono e o sonho no
ser humano. No item 3 mencionei brevemente como estender a evolução darwinista:
assumindo-se que nem todas mutações e nem todas seleções naturais foram
aleatórias. Isso poderia estender a pesquisa feita nesse campo. Um
interessantíssimo exemplo dessa pesquisa é o artigo de Craig Holdredge,
mostrando que a velha e popular ideia darwinista de que as girafas
desenvolveram seu pescoço comprido para atingir folhas mais altas nas árvores
não é sustentável (por exemplo, girafas fêmeas são menores do que as machos,
girafas têm grande dificuldade para beber etc.) [HOL].
Não se deve ignorar a importância da evolução darwinista para o
desenvolvimento da humanidade: ela contribuiu decisivamente para eliminar o
poder da fé, que vai contra a tendência do ser humano moderno de buscar
compreensão. No entanto, uma das suas consequências fundamentais foi espalhar o
DCCC. Mas já é mais do que tempo de torná-la independente do DCCC, de maneira a
ampliar nossa compreensão do mundo. Por exemplo, é claro que a evolução
darwinista não consegue explicar certos aspectos da evolução, por exemplo as
diferenças que os seres humanos têm em relação aos animais, como o fato de
nossa coluna vertebral ter um duplo S, o fato de não termos pelo ou penas etc.
(ver também os outros aspectos citados no item 3 acima).
Penso que cada indivíduo deveria fazer uma escolha consciente entre duas
hipóteses de trabalho mutuamente exclusivas: ser materialista ou ser
espiritualista, conforme as caracterizações dadas no item 2. Essa escolha é
essencial pois a partir dessas visões de mundo uma vida coerente deveria ser
absolutamente diferente, e dois tipos absolutamente diferentes de ações
deveriam ser seguidos. Por exemplo, se o ser humano é um sistema puramente
físico, vamos usar máquinas para ensiná-lo várias coisas, isto é, passemos a
usar largamente computadores na educação. No entanto, se a visão é
espiritualista, é necessário concluir que o aprendizado é algo muito complexo,
envolvendo o desenvolvimento da parte não física da criança e do adolescente.
Quem sabe as máquinas prejudicam esse desenvolvimento – afinal, nenhuma máquina
é neutra, todas têm alguma influencia sobre o ser humano. Experimente-se pegar
um martelo na mão. O que vem à mente? Batê-lo com força, com violência, numa
superfície, num prego etc. Pegue-se agora um travesseiro. Com ele se pensa em
tranquilidade, em repouso. Ninguém pega um martelo e pensa em tranquilidade e
repouso; ninguém pega um travesseiro e pensa em usá-lo em uma ação violenta (a
menos da infância – que delícia fazer uma guerra de travesseiros...). A
televisão induz um estado de sonolência no telespectador, prestando-se assim ao
condicionamento, e não à informação e à educação. Um outro exemplo típico de
hoje em dia é o computador: como ele é uma máquina matemática, seu uso força o
emprego de um raciocínio lógico-matemático, apesar de isso não transparecer – a
menos do caso dos programadores, onde a imposição desse tipo de raciocínio é
total (ver meus artigos Os meios eletrônicos e a educação: televisão, jogo
eletrônico e computador, Computadores na educação: por quê, quando e como, e Considerações sobre o
projeto 'um laptop por criança').
Encaro a escolha de uma daquelas duas hipóteses como sendo a adoção da
hipótese existencial mais fundamental que cada um deve fazer. É interessante
notar que essa adoção pode ser feita em liberdade: não é possível provar
fisicamente que existem fenômenos não físicos, e não é possível provar que eles
não existem. Quero deixar claro que não acho correto alguém escolher a hipótese
espiritualista por qualquer satisfação pessoal ou tradição. Nesses casos, a
escolha não será feita em liberdade. Neste artigo, procurei apontar para várias
evidências que podem servir para se considerar a hipótese espiritualista como
razoável – possível ela obviamente é.
A adoção da hipótese materialista deveria ter consequências profundas na
pessoa que a adota. Infelizmente, muitos, se não a maioria, ou quase todos os
materialistas não são coerentes. Por exemplo, muitos deles admitem a liberdade
no ser humano. Como espero ter deixado claro no item 5.1, isso não faz sentido
do ponto de vista material: a matéria e a energia devem seguir inexoravelmente
as condições e "leis" físicas.
Uma outra incoerência de muitos materialistas é o fato de admitirem a
responsabilidade do ser humano. Einstein, durante muito tempo, foi um
materialista coerente. Ele dizia compreender perfeitamente que uma pessoa
pudesse fazer más ações, pois ela era determinada pelo seu organismo (bem na
linha determinista de Spinoza, que admirava), não tendo portanto
responsabilidade. Só que aí vieram os nazistas e, quando ele ficou sabendo dos
campos de extermínio, colocou a responsabilidade por eles não só nos nazistas,
mas em todo o povo alemão [JAM, p. 71]! Sem liberdade, não pode haver
responsabilidade.
Não foi só essa a incoerência que encontro em Einstein. Ele foi um
profundo humanista, demonstrando um grande amor pela humanidade (veja-se, por
exemplo, seu livro Como Vejo o Mundo). Ora, como vimos em 5.2, esse
amor altruísta também não faz sentido do ponto de vista materialista.
Sem liberdade, também não pode haver também dignidade humana. Se o ser
humano é determinado por sua matéria, suas atitudes são todas automáticas. Com
isso, não pode haver sentido para a vida.
Um problema interessante, que abordarei muito rapidamente, é o seguinte:
pode-se ser livre ao seguir leis sociais? Um exemplo é o de se estar guiando e
se chegar a um semáforo vermelho. Pode-se parar nele por medo de tomar uma
multa, ou por medo de ser abalroado por um veículo vindo na outra direção. Ora,
quando se age por medo, portanto por causa de um sentimento, não se age em
liberdade. Uma outra possibilidade é pensar-se que a lei que obriga a parar em
um farol vermelho tem sentido, pois protege os cidadãos de acidentes, organiza
o tráfego etc. Se a pessoa reconhecer a validade de uma lei, e segui-la
conscientemente, estará fazendo-o em liberdade. A propósito, admiro muito o
fato de o brasileiro ser crítico com as leis, por exemplo ao diminuir a marcha
do carro e cruzar um farol vermelho de madrugada, se não há trânsito. No âmbito
humano e no social não deveriam existir regras absolutamente rígidas – por isso
em muitos casos as leis não são aplicadas automaticamente, cabendo defesa,
recurso etc.
Uma das consequências infelizes da visão materialista é de que a
história deixa de fazer sentido. Marx tentou introduzir um materialismo
histórico, mas o que ele fez foi tornar a história a coisa mais monótona
possível: é tudo luta de classes, seja com o ser humano das cavernas, na
antiguidade, ou na época atual. Obviamente, ele não pôde considerar que o ser
humano mudou durante a história; do ponto de vista materialista, a única
mudança que se admite é a cultural. Do ponto de vista espiritualista, a
história pode ser considerada um reflexo das mudanças da constituição não
física do ser humano. Com isso, ela começa a fazer sentido. Por exemplo, o
materialismo pode na melhor das hipóteses considerar as manifestações
religiosas da antiguidade como superstições e invencionices. Do ponto de vista
espiritualista, elas podem ser consideradas, inicialmente, como fruto da
existência de órgãos de percepção supra-sensorial que, como expus no item 2,
foram decaindo com o decorrer da história. Em compensação, o ser humano foi
desenvolvendo sua capacidade de observar com clareza a natureza, de pensar
clara e abstratamente, e de expressar suas ideias em conceitos. Claramente,
essa última capacidade não existia na antiguidade remota, como mostram muito bem
todos os escritos religiosos daquela época, onde a expressão era feita por meio
de imagens. Existe uma passagem no Novo Testamento que ilustra muito bem esse
fato. Trata-se da Parábola do Semeador [p. ex. em Mat 13:3-8]; depois de o
Cristo Jesus contá-la ao povo, os discípulos perguntam-lhe "Por que lhes
falas por parábolas?" [13:10], e aí ele diz "a vós é dado
conhecer" [13:11] (isto é, ele tinha feito um desenvolvimento nos
discípulos a tal ponto que eles podiam compreender conceitos), e passa a explicar
conceitualmente o significado das imagens (13:19-23).
Talvez fosse interessante contar aqui uma experiência pessoal. Fui uma
vez a um congresso de Criacionismo. Lá perguntei aos presentes se achavam que
os dias da criação eram de 24 horas, e a resposta foi "sim". Aí li a
Parábola do Semeador (eu tinha ido armado com uma Bíblia), e perguntei:
"Se o Cristo, em quem vocês acreditam, diz que fala por imagens, e que
existem conceitos por detrás delas, por que vocês não consideram o relato da criação
do mundo na Gênese como sendo constituído por imagens?" Um dos presentes
rapidamente revidou em altos brados: "O senhor não está sendo nem
criacionista, nem evolucionista, está é sendo confusionista!"
Já que falei na Bíblia, vou aproveitar para comentar sobre algo que está
profundamente ligado a muitas religiões: o monoteísmo. Lendo cuidadosamente a
Bíblia, parecia-me que no seu início não havia um monoteísmo. De fato,
examinemos, por exemplo, aquilo que se tornou talvez a principal invocação
religiosa dos judeus, o Sh’má Israel..., na minha tradução literal,
a partir do hebraico vocalizado (isto é, com vogais), "Ouça Israel, Jeová
[é] nossos Elohim, Jeová [é] um" [Deut 6:4]; em hebraico não há o presente
do verbo ser. Nessa oração, eu tinha a impressão de que a referência era para o
fato de haver uma única divindade (Jeová, pertencente à categoria dos Elohim)
associada ao povo judeu, mas não que não existiam outras. Aliás, deveriam haver
outros Elohim. Em Ex 18:11 a referência a isso é absolutamente clara: "Agora
sei que grande é Jeová dentre todos os Elohim...", e logo depois, no
início dos 10 mandamentos, em Ex 20:3, ou em Deut 5:6, "Não existirá para
ti outros Elohim diante de mim" (minhas traduções), e em muitas outras
passagens eu lia referências a vários deuses (por exemplo, outros Elohim). Pois
qual não foi meu espanto ao ler, no magnífico livro do historiador inglês Paul
Johnson História dos Judeus que ele (um não judeu) tinha
opinião semelhante, indo obviamente mais longe: ele diz que a noção monoteísta
universal aparece apenas com Isaías [JOH, p. 86]. Com isso, quero apenas
apontar para o fato de que deve haver um estudo sobre a religiosidade na
antiguidade, e devemos nos livrar de ideias pré-concebidas que são fruto de
tradições. Obviamente, é impossível fazer esse estudo do ponto de vista
materialista. Desse ponto de vista, é necessário afirmar, como eu já mencionei,
que os nossos antepassados eram todos supersticiosos ou fantasiavam bobagens.
Os mitos passam a ser não imagens de uma realidade não física, mas puras
invencionices. Com isso, cria-se um fosso intransponível entre o ser humano
moderno e o da antiguidade. Já o espiritualismo permite compreenderem-se os
mitos e o que há por detrás das magníficas imagens dos antigos relatos
religiosos, criando uma ponte entre nós e nossos remotos antepassados.
Por outro lado, a visão de um número muito grande de pessoas que se
dizem religiosas é, no fundo, puramente materialista, pois limitam-se a falar
de um ente divino (portanto, não físico) abstrato, incompreensível, que chamam
de Deus. Como vimos, o que se chama hoje de Deus ocorre na Bíblia com dois
nomes diferentes, inicialmente os Elohim, que criam o mundo, e apenas em Gen
3:1 aparece Jeová sozinho; ele aparece várias vezes junto com os primeiros a
partir de Gen 2:4. Em algumas traduções, como a do Padre João F. D'Almeida, os
primeiros são traduzidos por Deus e o segundo por Senhor, um reconhecimento de
que havia uma clara distinção no original. O sentido profundo dessa distinção
perdeu-se, chamando-se tudo de Deus. Já há vários séculos essa entidade deixou
de ter qualquer sentido para o ser humano: virou uma pura abstração. Não é à
toa que, para esse Deus das religiões, Nietzsche só podia dar a classificação
de "morto". Compare-se essa noção de um "único" ser divino
não físico com o que andei expressando neste artigo: a existência de algo não
físico em cada ser vivo, atuando essencialmente nele e que explicaria vários
processos observáveis. Trata-se de algo muito mais próximo de nossa
compreensão, pois podemos ver sua manifestação, por exemplo em nossa forma e em
nosso pensar, sentir e querer, bem como no mundo exterior.
Muitos dos religiosos não reconhecem a existência de processos não
físicos nos seres vivos – a menos de uma obscura "alma" no ser
humano. Com isso, não admitem uma investigação desses processos. Isso provoca
uma separação total entre sua mentalidade e a científica, a ponto de, tanto
cientistas quanto religiosos, dizerem que a religião e a ciência tratam de dois
campos distintos e não compatíveis. Um famoso geneticista brasileiro, em um
debate público comigo na Universidade de São Paulo, afirmou: "Durante a
semana ponho o avental e vou para o laboratório, no domingo ponho o terno e vou
para a igreja; que mal há nisso?" Para mim, essa dicotomia é uma tragédia.
Cada ser humano sadio é um só indivíduo, com uma só personalidade. É uma
tristeza ver que as noções de ciência e de religião produziram uma cisão
completa entre elas; com isso, cientistas que se acham religiosos têm na
verdade duas personalidades, com duas visões de mundo totalmente incompatíveis.
Um espiritualismo como estou mostrando aqui pode unir a ciência e a religião.
A propósito, algumas religiões negam a liberdade sendo, portanto, no
fundo, materialistas. Cercear a liberdade humana e mesmo destruir a vida humana
por motivos religiosos parecem-me também uma indicação do materialismo de
muitos que se dizem religiosos. Aliás, como mostrei em meu artigo contra a pena de morte, uma
cosmovisão realmente espiritualista deveria ser contra matar qualquer pessoa e
portanto contra a pena de morte: isso interrompe um processo de desenvolvimento
individual que não se tem o direito de fazer. Isso não significa, no entanto,
que não se proteja a sociedade, confinando uma pessoa assassina até que ela
mostre ter mudado e se tornado imune a esse maior aspecto antissocial que pode
haver.
A falta total de noção compreensível da divindade e manutenção de
tradições oriundas de tempos em que o pensar conceitual ainda não era claro,
faz com que quase todos os intelectuais e cientistas, com certa razão, abominem
tudo o que diz respeito a algo não físico. Quero com isso dizer que as
religiões praticadas hoje em dia são responsáveis, em grande parte, pelo
materialismo crescente que grassa na humanidade.
A adoção da hipótese espiritualista tem consequências drásticas para o
indivíduo que a adota. Por exemplo, a partir dessa hipótese pode-se admitir que
cada ser humano pode ser livre, que o desenvolvimento da liberdade foi a maior
conquista da humanidade, e que o desenvolvimento do amor altruísta é a missão
suprema de cada ser humano. (Como eu disse em 5.2, o amor só pode ser altruísta
se provir de total liberdade.) Isso leva a atitudes morais baseadas em
compreensão, e não em moralismos ou sentimentalismos. Por exemplo, cercear a
liberdade de alguém que não é perigoso seria imoral.
Essa hipótese pode levar a uma concepção de vários fenômenos
completamente diferente da usual. Por exemplo, tomemos a visão que se tem de
doenças hoje em dia. Elas são consideradas pela medicina clássica materialista,
sintomática, como algo – desculpem o paradoxo – diabólico, cujos sintomas devem
ser eliminados a qualquer custo. Já uma visão espiritualista poderia afirmar o
seguinte. A natureza aparenta ser tão sábia e harmônica, como iria introduzir
doenças, se estas são uma estupidez? Quem sabe as doenças são necessidades do
ser humano, para que possa desenvolver-se. Não é à toa que se diz "peguei
uma gripe", e não "a gripe pegou-me". A sabedoria das línguas
mostra que pode haver algo por detrás das doenças, que não seriam fruto de mero
acaso. Nesse sentido, o papel da medicina deveria ser o de possibilitar que o
paciente supere a doença aproveitando ao máximo o que esta tem a lhe dar – é um
verdadeiro processo de aprendizado e de desenvolvimento pessoal. É óbvio que
não podemos arriscar a vida de um paciente, devendo-se fazer o possível para
salvá-la se estiver em perigo, com quaisquer meios (atenção, isso significa
prolongar a vida, mas não prolongar a morte de uma pessoa desenganada ou em
estado vegetativo!). Mas isso não significa fazer o exagero que se faz hoje em
dia. Por exemplo, eu, o leitor e todos os outros brasileiros somos medicados
forçadamente. Trata-se da adição de iodo no sal e, mais recentemente, de ferro
e ácido fólico na farinha refinada. Mas isso vai absolutamente contra a
liberdade pessoal! Eu tenho uma alimentação equilibrada, não preciso do iodo do
sal para não ter bócio! (Já há indicações de que esse iodo está provocando
hipertiroidismo.) Eu quero poder decidir se tomo ou não um medicamento!
Vou relatar certos aspectos da medicina de experiência própria. Comecei
a ter catarata. O que fez a medicina? Esperou "amadurecer" e tirou o
cristalino fora, substituindo-o por uma lente de plástico (com resultado
maravilhoso). Tive hiperplasia da próstata. O que fez a medicina? Esperou para
ver, quando não dava mais para esperar, cortou uma boa parte dela fora (com
resultado maravilhoso). Mas isso não é medicina, é uma oficina mecânica! Em
lugar de curar, substitui a parte defeituosa ou corta fora.
Não adianta ser simplesmente um espiritualista, na concepção apresentada
no item 2. É preciso encontrar ou desenvolver uma concepção espiritualista que,
para ser "satisfatória", precisa, em minha opinião, ter as seguintes
características:
- Ser expressa
conceitualmente, voltada para a compreensão e não para o sentimento.
Considero uma cosmovisão espiritualista voltada para os sentimentos como
misticismo, não adequado para a atual constituição do ser humano.
- Não ser dogmática e
não exigir posições de crença ou fé.
- Ter aplicações
práticas nas várias áreas da atuação humana, inclusive a vida individual
diária, enriquecendo-as em relação a uma concepção puramente materialista.
- Apresentar um
edifício conceitual coerente, abrangendo em profundidade o mundo não
físico e mostrando seu relacionamento com o mundo físico, ampliando a
compreensão deste último em relação à ciência materialista corrente.
- Não apresentar
nenhuma incoerência a fatos históricos e científicos.
- Apresentar
explicações para a evolução histórica, de modo a se compreender as imagens
dos escritos religiosos antigos e dos mitos.
- Apresentar um
caminho para um desenvolvimento interior, de modo a possibilitar que
qualquer pessoa trilhe-o e faça, por conta própria, observações
supra-sensoriais.
- Preservar a
liberdade, a individualidade e a autoconsciência em todos os momentos de
observação sensorial ou supra-sensorial.
- Não conter nada
secreto, isto é, reservado a círculos restritos.
Conheço uma única cosmovisão que preenche esses requisitos: é a Antroposofia, introduzida por Rudolf Steiner – se alguém conhecer outra,
grite, por favor! A existência de um tal edifício de ideias e de práticas, como
por exemplo uma pedagogia própria (a Pedagogia Waldorf), uma medicina própria
(a Medicina Antroposófica), uma agricultura própria (a Agricultura
Biodinâmica), artes próprias (Euritmia e Arte da Fala), organização social
própria (a Trimembração do Organismo Social) etc. (ver essas e outras
aplicações em www.sab.org.br) dá, além
das evidências que citei, uma grande confiança de que o espiritualismo não
é uma fantasmagoria. Foi na Antroposofia que me inspirei para escrever estas e
outras linhas.
Neste item vou simplesmente resumir as hipóteses de trabalho descritas
acima, e adicionar mais outras essenciais.
- Existem processos
não físicos nos seres vivos e no universo.
- Pensar, sentir e
querer são processos não físicos com reflexos em processos físicos
interiores.
- A substância física
(matéria e energia) é uma "condensação" do não físico.
- O não físico é da
essência dos pensamentos.
- Por meio do
pensamento, chega-se à essência não física das coisas.
- No decorrer da
história, o ser humano foi mudando sua composição e características não
físicas, e com isso houve toda a evolução cultural.
- As plantas têm um
elemento não físico responsável por suas manifestações vitais, daí suas
distinções em relação aos minerais.
- Animais têm um
elemento não físico adicional que não ocorre nas plantas, daí suas
distinções em relação a elas.
- O ser humano tem um
elemento não físico adicional que não ocorre nos animais, daí suas
distinções em relação a eles. Esse elemento adicional é que dá ao ser
humano sua individualidade superior, isto é, a que transcende seu corpo
físico, sua cultura, sua nacionalidade, seu sexo e sua hereditariedade;
seu aperfeiçoamento é o sentido da vida. Isso depende do mundo físico,
onde erros podem ser cometidos (caso contrário não poderíamos ser livres).
Portanto, o mundo físico e a evolução existem para permitir o progresso
desse membro da constituição humana.
- É possível
desenvolver órgãos de percepção do mundo não físico. O pensamento comum
mostra que isso é possível, por exemplo ao se pensar em entes matemáticos
como uma circunferência perfeita, mas também em conceitos como
"rosa", "porta" etc. Além disso, o que é usualmente
chamado de "intuição", isto é, novas ideias que aparentemente
vêm de lugar nenhum, são uma indicação de que nosso pensamento atinge o
mundo platônico das ideias.
Espero ter mostrado que se pode ser espiritualista sem abdicar da
liberdade, da individualidade, de um pensamento claro e da autoconsciência, sem
ser levado pelos sentimentos e sem contradizer os fatos científicos e
históricos conhecidos. Note-se como a minha argumentação foi puramente racional
e "observacional", e não é baseada em puras abstrações sem
correspondência ou atuação observáveis no mundo material, ou em sentimentos ou
fantasmagorias, como se passa com praticamente todas as religiões.
Um ponto essencial deste artigo é que uma experiência pessoal de se ter
liberdade no pensamento é uma indicação muito forte de que algo não físico deve
estar ativo dentro de cada pessoa pois, como expus, da matéria não pode advir
liberdade.
Também expus minha teoria de que o não determinismo físico pode ser
usado pelos membros não físicos dos seres vivos para direcionar o crescimento e
a regeneração, produzindo e mantendo suas formas distintas. Estas seguem
claramente modelos mentais, pois podemos reconhecê-las com nosso pensamento.
Minha teoria pode também ser aplicada a atividades neuronais, refletindo nossos
pensamentos e sentimentos para nossa consciência. Estou seguro de que essa
teoria poderia ser investigada mais a fundo, examinando-se não determinismos (ou
aleatoriedades) aparentes e procurando por fenômenos que parecem não ter
explicação física.
A existência de processos não físicos no universo pode ser simplesmente
tomada como hipótese de trabalho, expandindo a pesquisa científica. Por que
muitos materialistas recusam-se a expandir sua visão de mundo a fim de abarcar
também o universo não físico? Parece-me que isso é devido ao desconhecimento
dessa possibilidade e também por medo de perderem as características
mencionadas no primeiro parágrafo depois da lista das hipóteses de trabalho.
Ora, medo é uma manifestação de sentimento e de instinto. Essa é uma atitude
que se deve esperar de um cientista?
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[ZAJ] Zajonc, A. Catching the Light: The Entwined History of Light and Mind. New York: Oxford Univ. Press, 1993.
Agradeço a Graham Kennish por uma revisão cuidadosa da versão em inglês
e muitas sugestões, incorporadas em 6/10/07.
Fonte: http://www.ime.usp.br/~vwsetzer/espiritualista.html
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